No tempo da “panema”
“Eu ainda sou do tempo da ‘panema’. Hoje não tem mais panema, mas também não tem mais caça”. Foi assim que dona Cecília Mendes (tia de Chico Mendes, já falecida) me falou das crenças dos seringueiros quanto ao azar, ou “panema”, na caçada.
Gomercindo Rodrigues
Para não ficar “empanemado” era necessário cumprir algumas regras fundamentais:
- Tinha que cortar a carne da caça e lavar a tábua só com água, sem sabão.
- A roupa do caçador que, claro, ficava manchada com o sangue da caça, tinha de lavar só com água, até tirar o sangue, sem usar sabão, para não “empanemar”.
- A mulher não podia passar por cima do sangue onde a caça tivesse sido “tratada”, se pisasse no sangue “botava moleza”.
- A corda de tirar o couro da caça devia ser sempre a mesma, deixada no mesmo lugar.
- Ninguém podia pisar nos ossos, os cachorros tinham que roer ou, então, tinha que enterrar na mata, num “pé de pau” (próximo ao tronco de uma árvore.
No caso de “empanemar”, ou ficar com “moleza” na caça, o seringueiro tinha de cumprir alguns rituais para se livrar da panema.
Uma vez, seu Quinca, esposo de dona Cecília, (também falecido) matou uma caça. A carne foi mal salgada, estragou. Uma mulher jogou a carne fora. Seu Quinca ficou mais de um ano sem matar caça. Para tirar a panema, precisou tomar banho de pau d’alho e pião roxo, e ir pra mata. No outro dia seu Quinca foi pro mato, matou uma caça, tinha perdido a panema.
Outra receita para tirar a panema é do seringueiro Raimundo Monteiro. Numa tarde, deixa-se uma “jarina” com o “olho” amarrado com cipó. Na manhã seguinte, bem cedo, com um galho de pião roxo, dá-se uma surra na jarina para tirar a “panema”, falando em voz alta o nome da pessoa que “botou moleza”. Porém, se não foi essa pessoa, o “empanemado” cai num febrão danado.
Para os seringueiros, esse é um recado da natureza para combater a injustiça, ou seja, antes de acusar alguém, é preciso ter certeza, caso contrário, tem-se que arcar com as consequências.
Gomercindo Rodrigues – Engenheiro Agrônomo. Advogado. Amigo e assessor de Chico Mendes. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri.
Palavra de origem tupi, panema designa um conceito conhecido desde o início do período colonial, estando presente nas obras de cronistas dessa época como As singularidades da França Antárctica (1978 [1557]) de André Thévet (1502-1590) e o Tesoro de la lengua guaraní (1639) de Antonio Ruiz de Montoya (1585-1652).
Como tantas outras palavras e ideias de origem tupi, o termo circulou pela América do Sul e hoje é usado por comunidades de pescadores, de seringueiros, por quilombolas, por populações urbanas, e adotado por indígenas de outras famílias linguísticas.
Em línguas caribe, aruaque, yanomami, arikém, jê, katukina, pano, jabuti e tikuna, por exemplo, existem termos próprios que guardam sentidos análogos ao de panema.
Significados mais conhecidos
Seus significados mais conhecidos são o de azar, má sorte e infelicidade. Eles são de uso popular, estão dicionarizados e vêm sendo assim reproduzidos desde os primeiros estudos antropológicos sobre o tema.
A panema remete aos contextos do insucesso na caça, na pesca, nas roças, nas relações conjugais, entre entes variados. Ela qualifica as pessoas, mas também cachorros que não matam caça; árvores que não dão frutos; espingardas que não atiram; e, ainda, rios que não dão peixes.
Em todos os casos, trata-se de expectativas frustradas, algo que não age como deveria, que não produz o que se esperaria, tendo normalmente viés negativo.
Artigos sobre a “Panema”
Na etnologia indígena existem dois artigos de síntese sobre o assunto: “Panema” (1951) de Eduardo Galvão (1921-1976) e “Panema: uma tentativa de análise estrutural” (1975 [1967]), escrito por Roberto DaMatta (1936-). O primeiro apresenta a panema como uma “crença do caboclo amazônico”, produto do “processo de fusão” entre crenças indígenas e ibéricas. Texto curto, mas bastante analítico, tem o mérito de ressaltar a importância da panema como um aspecto da vida comunal e cotidiana. O segundo é declaradamente teórico-metodológico.
O autor propõe abordar o tema por meio de um teste do método da análise estrutural em antropologia desenvolvido por Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Em ambos os casos, o material analisado provém de trabalhos com populações da Amazônia tidas à época como caboclas, sendo que a análise de DaMatta se vale de dados secundários com base nos trabalhos de Charles Wagley (1913-1991) e do próprio Galvão.
Desde as obras dos cronistas já chamava atenção o fato da panema envolver causalidades peculiares e complexas. Elas remetem a problemas existenciais, a questões morais e a fatores organizacionais, além de qualificar estados, capacidades e experiências.
Esses aspectos foram percebidos por Galvão, mas foi com DaMatta que a atenção à teoria da causalidade da panema tomou um caráter teórico mais detido e refinado, que também presenciamos contemporaneamente em Caipora e outros conflitos ontológicos (2013) de Mauro W. B. Almeida (1950-).
Destacam-se causas relacionadas à potência de contágio do sangue menstrual e outros fluídos corporais; à sovinice, principalmente no contexto da obtenção e compartilhamento de alimento; e à relação direta com seres potencialmente causadores de panema, como quando se insulta o animal que se pretende caçar ou, simplesmente, se enuncia a intenção de caçar.
Dessa forma, a panema pode ser considerada um objeto etnográfico significativo na etnologia sulamericanista, tendo sido comparada por Galvão a fenômenos como o mana melanésio, por DaMatta com o totemismo e por Almeida com o conceito de gravidade na física.