O difícil caminhar –
Ainda que a questão não esteja pacificada entre os especialistas, estudos mais recentes identificaram que o ato humano de caminhar remonta há 3,7 milhões de anos, por óbvio o mais primitivo modo de se deslocar na superfície terrestre. No entanto, mesmo que tenhamos conquistado a lua e os primeiros passos humanos se aproximem do planeta Marte, caminhar ainda é o mais complexo desafio para as pessoas aqui na terra em pleno século XXI.
Com as populações migrando cada vez mais para as cidades, é nesses ambientes adensados que colecionamos os graves problemas da mobilidade humana, em especial nas regiões cujas infraestruturas são projetadas de sorte a priorizar os modos individuais motorizados de deslocamento.
O urbanista estadunidense Jeff Speck afirma que a construção das cidades parece obedecer a uma lógica cuja incumbência é derrotar os pedestres. Identifica nas “vias alargadas, calçadas diminuídas, árvores suprimidas, guias rebaixadas para dar acesso a estacionamentos” as intervenções que sacrificam a paisagem urbana em favor da circulação de automóveis “nas quais a vida dos pedestres é apenas uma possibilidade teórica” (SPECK, 2012).
Na mesma linha segue o pensamento do urbanista dinamarquês Jan Gehl, que identificou o desprezo com as pessoas a característica comum da maioria das cidades, “independentemente da sua localização, economia e grau de desenvolvimento”. Para ele, “as pessoas que ainda utilizam o espaço da cidade em grande número são cada vez mais maltratadas (…) A cada ano, as condições para a vida urbana e para os pedestres tronam-se menos dignas” (GEHL, 2015).
Ambos os autores convergem à necessidade do resgate da dimensão humana como o propósito indispensável para o planejamento das cidades, e como tal identificam na recuperação e otimização das áreas destinadas aos pedestres a política urbana essencial para desenvolver “cidades vivas, seguras, sustentáveis e saudáveis” (GEHL, 2015).
O caminhar seria o modo pelo qual a função social do espaço da cidade estaria reforçada como princípio para garantir a democratização do seu uso; a forma ativa para dela se apropriar; a escala adequada para vivenciar os detalhes que a compõem – a urbanidade resgatada, enfim!
Nesse contexto tão atual, não é exagerado imaginar que conseguimos ofuscar o sentido das cidades, transformando-as em meros pontos de passagem, espaços degradados e violentos, decorrentes de um jeito de agir corrompido por tecnologias capazes de nos projetar ao individualismo exacerbado.
Assim é que as políticas públicas adotadas pelos gestores das cidades corromperam-se de sorte a responder predominantemente às demandas das novas tecnologias de mobilidade, relegando ao plano inferior o conceito de cidades para pessoas.
O momento atual é, pois, de resiliência ética e conceitual do ponto de vista urbanístico, e a estratégia possível capaz de garantir o direito à cidade para todos necessariamente se inicia na construção da caminhabilidade ideal pela qual os contatos humanos se fortalecem na rotina.
Verdade que a escolha pelo modo de se locomover a pé, via de regra, depende de fatores externos a ela, tais como as condições físicas e sociais das pessoas, mas sobretudo às infraestruturas disponíveis que garantam e estimulem essa opção.
Faz-se necessário que sejam adequadas e atendam condições que lhes permitam ser “proveitosas, seguras, confortáveis e interessantes” – estas, as condições de caminhabilidade que vão influenciar a predisposição para as pessoas caminharem nos ambientes urbanos (SPECK, 2012).
Muito distante da realidade do Brasil o cenário ideal. Por aqui perdem os espaços urbanos suas funções produtivas, degradam-se e tornam obsoletos e nada atrativos seus atributos estéticos. Esta realidade nos leva à certeza de que precisamos mobilizar recursos para os processos de intervenções urbanas que sejam capazes de devolver ao meio urbano a vitalidade perdida. Um caminho espinhoso que requer inovação, mas sobretudo vontade política de fazer para que garantido seja o que há de mais óbvio e eloquente no planeta: o ato de caminhar.