O legado de Dona Bernadete

O legado de Dona Bernadete

Minha mãe e amiga Bernadete, como todas nós, um dia faria sua passagem. Eu, que vivi com ela, sonhei com ela, chorei com ela, sempre imaginei que esse dia seria triste e lindo. Nesse dia, suas filhas e filhos poderiam celebrar sua passagem e festejar tudo o que ela foi em vida.
Nos retiraram o direito de festejar tudo o que ela significou para nós. Estamos chocadas com a crueldade. É da crueldade que venho falar. Não queria falar dela. Mas tenho que falar. Porque ainda sonho com o dia em que nós, mulheres pretas, não seremos mais violentadas. Ontem a funerária precisou ficar, das 13h às 18h, tentando maquiar mãe Bernadete, o que permitiria que seu velório pudesse ser fosse feito com a urna aberta.

Foram 12 disparos!!!
As balas atravessaram o rosto e o tórax de nossa mãe.

No IML, a primeira orientação era sepultá-la com urna fechada. A família não mediu esforços para que ela fosse vista. Queríamos vê-la e pedir sua benção.

Foi tão cruel!

Ela, sem saber, abriu a porta de casa para seus assassinos. Uma líder quilombola. Em sua casa recebia todas as pessoas. Interpelou seus assassinos dizendo “meu filho”, enquanto eles confirmavam sua identidade. Os demais familiares foram trancafiados em um quarto. O assassino levantou o visor do capacete e disparou contra mãe Bernadete à queima roupa.

Mesmo com o rosto muito ferido, nossa mãe estava plena, com suas guias e orixás. É assim que lembraremos dela e invocaremos sua memória. Sua fé era inabalável e a conduziu em meio a tanta violência e agressão numa luta por justiça. Justiça pelo território, pelo povo preto e quilombola e por seu filho assassinado.

No rito de passagem religioso, em que nós iniciadas participamos com as a autoridades religiosas, sentimos a emoção de quem tem fé. Em meio às lágrimas e cantos, entregamos nossa mãe ao Órun. Ela está com ele agora e temos certeza que esse não é o seu fim.

A minha revolta com a crueldade e a injustiça de quem tentou deixá-la desfigurada não cabe em mim.
É com tristeza que vejo que toda a visibilidade que ela tentou obter em vida, para denunciar as violações que sofremos e obter justiça para Binho, só acontecer porque ela foi covardemente executada.
A dor, a revolta e a indignação são imensas.

Não me chamem para caminhada de paz, porque estou pra guerra.

NOTA DA REDAÇÂO: Texto extraído dos grupos de Whatsapp. Não nos foi possível checar a autoria. Nós da Revista Xapuri nos somamos na indignação e na solidariedade com a família de dona Bernadete. Foto: Reprodução/Redes sociais.

Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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