O modus operandi do Carrefour e a necessidade de compensação de danos

O modus operandi do Carrefour e a necessidade de compensação de danos

Marcelo Gentil traz a história do pó preto e as devidas compensações ambientais para que os que impunemente vivem “no limite da irresponsabilidade com o meio ambiente e com as vidas humanas. Desta forma os criminosos podem corrigir, minimizar, compensar e/ou reparar os males causados. Ainda trata de outro crime: o e institucional a que é submetido o povo preto por multinacionais estrangeiras, Algumas ações tem sido exitosas, entretanto, os fatos comprovam que continuam a tratar e a julgar as pessoas pela cor da pele

Em 2015, três megaempresas de mineração: Vale, Arcelor e Samarco, foram obrigadas, por resolução da chamada CPI do pó preto, instaurada pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo, a fazerem compensações e reparações urgentes pelos danos ambientais e coletivos causados ao meio ambiente e à população do .

A compensação ambiental representa um importante mecanismo legal, para que empresas que causem grandes prejuízos ao meio ambiente e, por conseguinte, à população corrijam, minimizem, compensem e/ou reparem os males causados. Todavia, alguns desses impactos algumas vezes são irreversíveis, notadamente aqueles associados a passivos ambientais de largo alcance. Quando isso acontece, a lei n° 9.985/2000 determina que tal compensação se dê por meio do investimento de recursos financeiros para a manutenção ou criação de unidades de conservação.

No geral, as empresas que têm sido obrigadas a fazerem tais compensações são aquelas que operam, corriqueiramente, nos termos do que foi flagrado em um grampo telefônico da cúpula do governo de FHC de  atuação – “no limite da nossa irresponsabilidade” –, causando danos ao meio ambiente e às vidas humanas.  Como exemplos trágicos dessa prática, vide o caso dos recentes rompimentos das barragens de Mariana em 2015 e de em 2019.

Em outro campo, sem relação direta com as questões ambientais, a multinacional francesa, Carrefour, vem, ao longo dos anos de sua atuação em solo brasileiro, causando danos gravíssimos à vida, ao bem estar psicológico e à autoestima da população negra brasileira. Lastimavelmente, os casos que comprovam isso são muitos.  Para fins deste texto, listemos apenas alguns, a título de dolorosa ilustração:

 

  1. Em agosto de 2009, o servidor da USP, Januário Alves de Santana, foi barbaramente espancado por um grupo de cinco seguranças de uma loja da rede Carrefour em Osasco/SP. Januário foi acusado de tentar roubar um carro, estacionado em uma área interna do supermercado. O detalhe: o carro era de propriedade do próprio Januário.  A imprensa informa que, segundo a direção da rede, tudo não passou de um mal entendido entre o cliente e a equipe de . Depois de muitos protestos e ampla repercussão nos meios de comunicação, o supermercado rompeu o contrato com a empresa prestadora dos serviços de segurança, como fez agora neste caso de João Alberto Silveira Freitas.

 

  1. No Distrito Federal,  o Carrefour foi condenado a indenizar uma família em 10 mil reais, por um dos membros da sua equipe operacional ter queimado com a bituca do seu cigarro o pé de um  pequeno bebê no ano de 2015, ato que provocou queimadura de segundo grau, em função da sensibilidade da pele da criança, de apenas 7 meses.

 

  1. Entre 2017 e 2018, uma negra e lésbica – dependente química em recuperação – teria sido flagrada furtando um bolinho de bacalhau em uma loja do Carrefour na Zona Oeste do Rio de Janeiro e foi torturada por seguranças do estabelecimento com um pedaço de madeira e depois empalada pelo ânus, como forma de castigo.

 

  1. Em 2018, um homem – pessoa com deficiência – que abriu uma lata de cerveja no interior da loja, mesmo alegando que passaria no caixa a fim de efetuar o pagamento, foi agredido por empregados da loja Carrefour no ABC paulista. Esses funcionários agressores não eram da área de segurança.  A empresa se desculpou e informou que afastou os envolvidos.

 

  1. Isso sem falar no ato de extremo mau gosto e insensibilidade ocorrido em agosto deste ano, com a morte por mal súbito de um empregado de uma loja do Carrefour em Recife, Moisés Santos. Ao invés de fecharem a loja – sinal mínimo de respeito, como era de se esperar em um caso como esse – a empresa optou por cobrir e esconder o corpo de Moisés sob guarda-sóis e caixas de cervejas e de papelão. O fato pode até mesmo ser considerado como vilipêndio a cadáver, portanto, tipificado como crime pelo artigo 212 do Código Penal Brasileiro e, como tal, a empresa também poderá ser punida.

 

  1. Em setembro de 2020, a agora ex-empregada de uma das lojas da rede no Rio de Janeiro, Nataly Silva, foi obrigada a passar pelo constrangimento de ter que ler em alguns aventais de colegas, a frase: “só pra branco usar”.  Ao denunciar o ato de racismo, a empresa tratou o gravíssimo evento como “mi, mi, mi” e, pasme-se, qual foi a decisão da empresa? Nataly foi demitida.

 

A última das barbaridades cometidas por prepostos da rede ocorreu na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro de 2020,  quando dois homens brancos, seguranças do supermercado, um deles  soldado temporário da Brigada Militar gaúcha – portanto, atuando irregularmente na função de vigilante –, assassinaram covardemente com murros no rosto e estrangulamento, por meio do famoso golpe mata-leão, João Alberto Silveira  Freitas. O ato insano foi filmado e cronometrado com a duração de macabros 5 minutos e 20 segundos.

 

Nesse cenário de horrores, em Porto Alegre, além dos dois assassinos diretos, estavam outros/as empregados/as da loja. Uma delas, inclusive, flagrada tentando intervir, não para sanar as agressões, mas, sim, para ameaçar as pessoas que testemunhavam as cenas de barbárie, pedindo para que não filmassem os atos covardes e assassinos.

 

Mais um press release, mais uma vez a empresa afirma que não compactua com esse tipo de fato – que não é nada isolado – e suspendeu o contrato com o Grupo Vector, empresa responsável pelo fornecimento dos serviços de segurança para a Rede Carrefour em Porto Alegre, Extra, Atacadão, Walmart e Lojas Americanas.

Depois da perpetração dessa jornada de tanta , tendo como “gota d’água” mais recente a morte de João Alberto,  um homem negro, a empresa tenta se redimir  por meio de um mix entre jogada de marketing e gerenciamento de crise  e anuncia publicamente que vai criar um fundo, com aporte inicial de 25 milhões de reais, para combater o racismo no .

Não dá pra negar que a criação de tal programa seja importante. Todavia, a criação desse fundo, por si só, se administrado única e exclusivamente pela própria empresa (o que é direito dela), certamente não será capaz de transformar o comportamento do material humano que conforma a rede multinacional. Será, como se fala no adágio popular, “apenas para inglês ver”. Neste caso, para franceses verem.

É importante que entre as estratégias de superação do racismo institucional e estrutural arraigados na empresa esteja o de políticas de ações afirmativas e cotas étnico-raciais voltadas para o “andar de cima” da carreira, como está fazendo inteligentemente o Magazine Luíza.

Tão importante quanto, é preciso que essas estratégias contem com a participação direta de especialistas (pessoas físicas e organizações da civil) que, ao longo de décadas, têm dado sólidas contribuições sobre o tema.

Essas organizações, por meio do desenvolvimento de seus inúmeros projetos e entregas de políticas públicas abrangentes, têm conseguido levar o Estado brasileiro a criar programas,  políticas,  ações e legislações voltadas para mitigar as seculares desigualdades sociorraciais e inserir de forma qualificada o povo afro brasileiro nessa sociedade; a mesma sociedade que,  apesar dos esforços exitosos, infelizmente  continua a tratar e a julgar as pessoas pela cor da pele.

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Marcelo Gentil – Historiador. Licenciado em História pela UCSAL. Especialista em Gerência Social para Afrodescendentes da e Caribe (INDES/BID-EUA), foi diretor de Estudos, Projetos e Pesquisas da Fundação Palmares/Minc e é vice-presidente do Bloco Afro Olodum.

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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