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O Vareiro do Rio Parnaíba

O Vareiro do Rio Parnaíba

Por: : Jose Gil Barbosa Terceiro/ Causos Assustadores do Piaui

O Rio Parnaíba, por muitos e muitos anos, sempre foi uma importante rota comercial, Tanto liga o Piauí ao Maranhão, como liga o Sul interiorano piauiense, ao norte litorâneo. Mesmo antes da fundação de Teresina, e das primeiras barcas a vapor em águas piauienses, já era comum o tráfego de embarcações no Velho Monge, movidas pela força humana dos vareiros ou porcos d’água, profissionais do transporte de cargas  pelas águas do Rio Parnaíba, que atuaram por décadas, havendo  registro de sua atuação ainda na segunda metade do século XX.

As barcas comandadas pelos vareiros, apesar de possuírem grande largura, tinham pequena profundidade, afim de poderem navegar no rio em pequenas profundidades. De ferro ou de madeira, fabricadas nos estaleiros ingleses ou saídas das oficinas caboclas, nas cidades ribeirinhas, exageravam o seu carregamento de cargas alcança grande altura, elevando-se quatro, cinco, até seis metros acima do nível do rio, como que para compensar a falta de profundidade do navio. A carga era tanta que das bordas da barca não se viam fora da água senão uns quatro dedos, no centro, e apenas uns trinta centímetros, na pôpa e na proa. Ali transportavam-se, no mais das vezes, couros, sacas de algodão, cêra de carnaúba e outros produtos da região, quando navegando do interior para o litoral. Na volta, quase sempre eram levados produtos da indústria civilizada para o conforto precário dos homens do alto sertão.

A força que movia esse gênero de transporte primitivo era a força humana dos vareiros, Andavam eles de um lado e de outro da barca, orlando a montanha de carga, por um pequeno caminho de dois palmos de largura, que ia do convés da proa ao da pôpa. Ali  de Floriano a Parnaíba, rio abaixo, ou de Parnaíba a Floriano, rio acima, guiavam o barco através centenas de léguas, vencidas penosamente.

vareiros

Três, quatro, de cada lado da barca, munidos cada um de uma vara que media seis •ou sete metros, e tão sólida que o seu peso era, já, suficiente carga para um homem, os vareiros iam, lentamente, passo a passo, um do outro, até à tôlda de proa, e firmavam a vara no fundo rio. Fixavam, em seguida, a parte superior, no músculo do peito, acolchoado de carne calejada pela constância do exercício. E, firmando-se aí, vergados para a frente, apoiados na vara, cuja maior parte mergulhava na água, começavam a caminhar vagarosamente, o passo medido, pela borda da barca, no rumo da pôpa. Eles caminhavam para trás, como quem volta para o lugar de onde veio, ao passo que a embarcação caminhava para a frente, avançando sempre. Chegados à pôpa, retiravam da profundidade das águas a vara em que se apoiavam. Dirigiam-se, de novo, para a proa. E, de novo, vez após vez, repetiam a caminhada vagarosa e monótona, fazendo sempre o mesmo passo, naqueles quinze ou vinte metros de convés estreito, movendo a embarcação pelo Parnaíba, de modo quase imperceptível. O rio todo, de Amarração (Luiz Correia) ao último ponto navegável, quatrocentos quilômetros acima, era medido, desse modo, dezenas de vezes, pelo seu passo. Era esse, no mundo, o seu castigo. Foi essa, no berço, por ter nascido nas proximidades do rio, a sua condenação.

Transitavam assim, em repetido esforço, dia e noite em viagem que demorava às vezes cerca de um mês. Sob chuva e ao sol, sob a tempestade, tiritando de frio, ou sob a canícula, o dorso estalando às chicotadas de fogo do céu. O dia morre. Surgem as estrelas. E o vareiro, curvado sobre a vara cravada no rio, marcha, vagaroso, fazendo, solitário, viagens de centenas de léguas, naquele caminho que não mede uma centena de passos.

Às vezes, cantavam baixinho, em toada triste, uma cantiga saudosa e dolorida, aprendidas de seus antepassados no seu povoado ribeirinho. Quase sempre, porém, a sua canção era apenas um gemido, um lamento longo, a expressão de um esforço dos seus músculos. Atirava a vara ao rio. Fincava-a na areia. Firmava o peito na outra extremidade. E gritava, soturno e magoado:

-— U-U-U-Uôôôôi

vareiroNa descida, seguindo a corrente, com as águas baixas, o trabalho era quase o mesmo. A água não tem fôrça para carregar a barca, e é preciso que o vareiro a auxilie, pelo canal estreito e traiçoeiro. No inverno, porém, é menor o trabalho, mas é maior o perigo. A água, impetuosa e vermelha, trazendo na viagem o barro de todas as ribanceiras lambidas e desmoronadas na passagem, tinha, no mais das vezes, a velocidade das torrentes.

Carregada pelo rio, a barca se precipitava, como se quisesse chegar mais depressa que ele. O vareiro não tinha o trabalho de empurrá-la, de impeli-la; mas tinha que defendê-la. Na velocidade com que descia os estirões, a embarcação ia, nas curvas do rio, de encontro às margens. E, então, o vareiro impedia o choque: lançava a vara de encontro à ribanceira, ou ao fundo da água. A vara se curvava, estalava, às vezes quebrava-se, atirando o homem à correnteza, tragando-o ao fundo do rio; às vêzes, porém, o erguia no ar, suspendendo-o, atirando-o, como um boneco esfarrapado e sujo, sobre a montanha de carga.

Quando, nos dias de folga, o vareiro típico gostava de vestir calça de mescla ou riscado grosso, com camisa de listrinha azul e branco, exibindo sua musculatura de homem de sol, com talinge, nos braços, chapéu branco de abas curtas, viradas para cima e tamancos pesados, com rosto de sola ou pele de bode curtida e o cinto de sola grossa, com fivela de latão, era indispensável. Não esquecia a faca marinheira, embainhada, e cujo cabo destacava-se uma estrela de cinco pontas para combater “mandinga”. Sua arma era “cacete de jucá”, que sempre ficava na embarcação e, só usada quando ameaçados. Faziam a festa nos pequenos portos das comunidades ribeirinhas em que encostavam.

Nas viagens penosas e demoradas, muitas vezes os vareiros perdiam peso e adoeciam. Estava quase sempre febril, mas iam escapando com remédios caseiros e com as esmolas que lhe davam nos povoados em que adoeciam. Muitos vareiros, contudo, morriam nas viagens, e eram atirados ao rio, passando, assim, a fazer parte dele.

Com o advento das embarcações a vapor e com a profundidade cada vez menor dos rios, os vareiros foram diminuindo, tornando-se escassos ano após ano. Hoje já não se vêem mais tantos vareiros ao longo do rio como antigamente. Os poucos que subsistem tem atuação restrita em determinados trechos do rio, onde há carência de transporte fluvial.

No entanto, os vareiros continuam a povoar o imaginário das cidades localizadas às margens do rio. Incorporaram-se aos mitos e lendas do Piauí, sendo vistos aqui e ali, rio abaixo ou rio arriba.

Existem, em diversas comunidades ribeirinhas, relatos de embarcações assombradas comandadas por vareiros fantasma, quase sempre vistos navegando sob a lua cheia ou nova, cantarolando uma melancólica música que hoje ninguém conhece mais.

Por vezes, aparecem também de dia, quase sempre nas margens do rio, trajando as vestimentas de dias de festa, desde o chapéu branco de couro, até o velho cinto de couro com fivela de latão. O que se acredita é que alguns vareiros tenham se encantado quando sucumbiam nas águas do rio, e, desde então, passaram a proteger pescadores, barqueiros, navegantes e ribeirinhos do Velho Monge.

Há quem diga que, tal como o Caronte, o vareiro fantasma é, na verdade, uma entidade responsável por levar, para o além túmulo, as almas de pescadores, ribeirinhos e navegantes, que morreram em pecado, passando a vagar no mundo, como almas perdidas no além túmulo, para o mundo das almas.

Bibliografia citada pelo autor:

  • CAMPOS, Humberto de. Os “Vareiros” do Rio Parnaíba.  Boletim Paulista de Geografia, n° 5. Julho de 1950. p. 49-52.
  • NOLÊTO, Rafael. Mitologia Piaga: Deuses, Encantados, Espíritos e outros Seres Lendários do Piauí. Teresina: Clube de Autores, 2019.
  • O VAREIRO DO RIO PARNAÍBA. Jornal da Parnaíba, 03 de fevereiro de 2014. Disponível em <http://www.jornaldaparnaiba.com/2014/02/o-vareiro-do-rio-parnaiba.html>. Acesso em: 27 de maio de 2019.

Fonte: https://causosassustadoresdopiaui.wordpress.com/2019/05/27/o-vareiro-do-rio-parnaiba/


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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