Fatinha Bastos, a maga que tira arte das palhas

FATINHA BASTOS, A MAGA QUE TIRA ARTE DAS PALHAS

Fatinha Bastos, a maga que tira arte das palhas

Existe um ditado popular de que, quando o impossível nos rodeia, é necessário ter a sabedoria de “tirar leite das pedras”. Em Olhos D’Água, um lugarzinho pitoresco de pracinha com igreja matriz circundada por casinhas coloridas, vive a artesã Fatinha Bastos que, caminhando no mesmo sentido, se aperfeiçoou na lida de tirar arte das palhas.

Por Iêda Vilas-Bôas

Ali, arte, dom e inspiração se somam nas criações da “maga das palhas”, e o resultado se nos apresenta para encher de brilho olhos, alma e coração. Fatinha tem mansidão de mar em seus olhos azuis, correnteza de rio em seus longos cabelos e a força da mulher cerratense em defesa de suas ideias, de sua família, de seu povo.

Fatinha Bastos é anfitriã-mor de sua comunidade. Sua arte, como bênção de todos os santos, vem espontaneamente. Nada de esmerados e complexos projetos e desenhos ou infindáveis cálculos em seu ateliê. Para ela, o processo criativo ocorre de forma instantânea, mágica, lúdica e natural (sobrenatural?).

Nascida e criada em Olhos d’Água, recebeu seu talento manual de seus antepassados. Vinda de uma família inteira de artesãos, tomou gosto pelo ofício ainda na infância. O dom do artesanato, herdou de sua avó, Maria das Dores Pereira Dutra, e de sua mãe, Ana Pereira Dutra, que eram tecelãs do Distrito de Olhos d’Água, município de Alexânia, a 116 km de Goiânia, capital do estado de Goiás.

Desde criança esteve envolvida com todo tipo de arte manual. Começando pelo amarradio da palha na pamonha, que devia se parecer com uma boneca de cintura finíssima. Era a intimidade com a palha brotando de suas mãos.

Fatinha aprendeu a fazer esculturas de imagens sacras, bonecos, porta-guardanapos, mandalas, bailarinas, flores, palhaços. Seu manancial de arte traz o sacro e remonta à sua ascendência religiosa e à criação familiar. Oratórios, Santos, missas e religiosidade sempre ocuparam destaque na vida da menina que virou famosa artesã goiana.

E onde ela põe a mão tudo se transforma. Faz compotas de tomate seco temperados no capricho, acode o guisado, arruma os óculos no nariz, passa um olhar de cumplicidade para o companheiro, o também artesão em tecelagem, José Roberto Rocha Bastos, o Beto. Dá uma ordem de leve ao filho e escudeiro, preocupa-se com a filha e neto, e ainda acha tempo pra ver se seu protegido, o Celino, está com todos seus quereres em dia.

Celino é herança de família e xodó da casa e da artesã. Um homem que beira os 80 anos, classificado na medicina e na educação atual como um ser com deficiência, haja vista que é anão e tem imensa dificuldade em pronunciar sons e palavras, mas que compreende perfeitamente o mundo que o cerca. Celino, por si, é figura única: sujeito taciturno, ensimesmado e, às vezes, afobado e rebelde nos afazeres cotidianos mais simples.

Por vezes, apresenta-se hermético catando as pequenas pedrinhas no feijão. Por outras, enfrenta a morte dos seus entes mais queridos com tremendas gargalhadas que ecoam em todos os cantos da casa, demonstrando assim, ser o que melhor compreende o processo da transmutação e o desprendimento terreno. Fala chinês, às vezes japonês e, por insights de alguns à sua volta, diz-se que fala castelhano. Compreende tudo o que vê, escuta ou imagina e reproduz sua leitura em forma de arremedos e expressões simbólicas. Este é Celino, idoso pelo destino, mas com alma de menino. O protegido.

Fatinha, como é conhecida, produz sua própria matéria prima. As palhas de que precisa vem do milho e da banana que planta em sua propriedade. Exigente em sua arte e por não se contentar com a matéria-prima do mercado virou agricultora. A artesã dedicou estudo ao manejo das palhas e fibras e desenvolveu sua própria técnica para extrair várias tonalidades e texturas exatas na medida em que pede sua inspiração.

Mulher sábia, íntima das sabedorias populares, escolhe a lua certa para colher o milho e as plantas do Cerrado. Sua arte traz, também, profundo respeito com a manutenção e preservação do meio ambiente. Utiliza-se de outros materiais como o cedrinho, a folha da magnólia, a douradinha, a bucha, o ingá e vários tipos de folhagens, entre outros.

É a própria Fatinha que nos alerta: “O Cerrado é o meu grande professor. Ele ensina a gente a trabalhar. Se a gente souber respeitá-lo, ele nos dá de tudo. Às vezes, saio em busca de material e volto com ideias para uma nova peça ou o aperfeiçoamento de algo que já estamos produzindo”. Tem por hábito, pelo menos uma vez por semana, sair pelo campo em busca de fibras, fios, capim, cipós, cabaças e mais inspiração.

Com dedicação e talento, Fatinha conseguiu obter sementes variadas de milho e assim, palhas com outras cores naturais. A artesã se espelha na natureza e no seu imaginário para reproduzir a perfeição nos movimentos das vestes dos santos, no bater asas da fogo-apagou, na paciência estampada do sorriso de seu São Francisco, na placidez do presépio à espera do Salvador, na leveza do bailar de suas bailarinas… Cada detalhe é elemento importante na composição da peça.

Ao longo dos anos, Fatinha Bastos vem se aperfeiçoando, participa de feiras e exposições pelo Brasil inteiro, onde seus santos, anjos, guirlandas, fadas e outros mimos são, de imediato, sucesso garantido. O nome de Fatinha Bastos eleva Goiás como celeiro de artesanato inédito de primeiríssima qualidade.

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p style=”text-align: justify;”>Mulher dinâmica, esteve à frente da Secretaria de Cultura da Cidade de Alexânia, ganhou três vezes o Prêmio Top 100 de Artesanato, concedido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), e já participou do programa Mais Você (TV Globo), de Ana Maria Braga. De seu ateliê Fatinha Fibras e Fios, na Praça da Matriz de Olhos D’água, a artesã Maria de Fátima Dutra Bastos cria seres, santos, mitos e, dali, vai povoando e embelezando outras terras e outros mundos.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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