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Os olhos de raios X de Fernando Pessoa & Companhia

Os olhos de raios X de Fernando Pessoa & Companhia

E se eu disser a vocês que o Fernando Pessoa tinha visão de raios X? Numa carta enviada no dia 24 de abril de 1916 à tia Anica (Ana Luísa Pinheiro Nogueira, irmã de sua mãe), ele contou que viu, certa manhã, no café A Brasileira do Rossio, “as costelas de um indivíduo através do fato (paletó) e da pele”.

Por Antônio Carlos Queiroz (ACQ)

Passado o espanto, o esclarecimento: o Fernando, que se dedicou com a tia a promover sessões “semi-espíritas”, para contatar o espírito do tio-avô Gualdino, relata nessa carta que estava “desenvolvendo qualidades não só de médium escrevente, mas também de médium vidente”.

Abro aqui parênteses para imaginar a gargalhada do Alberto Caeiro, materialista empedernido, ao saber desse comentário,  assim como, outra vez, havia gargalhado do julgamento que dele fizeram como materialista: Uma vez chamaram-me poeta materialista, / E eu admirei-me, porque não julgava / Que se me pudesse chamar qualquer coisa. / Eu nem sequer sou poeta: vejo.

Prossigo com o registro do Pessoa: “Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam ‘a visão astral’, e também a chamada ‘visão etérica’. Tudo isto está muito em princípio, mas não admite dúvidas. É tudo, por enquanto, imperfeito e em certos momentos só, mas nesses momentos existe. [ Há momentos, por exemplo, em que tenho perfeitamente alvoradas (?) de ‘visão etérica’ — em que vejo a ‘aura magnética’ de algumas pessoas, e, sobretudo, a minha ao espelho e, no escuro, irradiando-me das mãos. Não é alucinação porque o que eu vejo outros vêem-no, pelo menos, um outro, com qualidades destas mais desenvolvidas. Cheguei, num momento feliz de visão etérica, a ver na Brasileira do Rossio, de manhã, as costelas de um indivíduo através do fato e da pele. Isto é que é a visão etérica em seu pleno grau. Chegarei eu a tê-la realmente, isto é, mais nítida e sempre que quiser?”

Ora, muito mais interessante do que essa suposta capacidade de perceber “auras magnéticas”, e de brilhar no escuro como sucata de Césio 137, foi a eleição que Fernando Pessoa fez dos olhos como recurso central de sua poética, dele mesmo e de seus heterônimos e semi-heterônimos.

Num poema de 1932, Ele Mesmo compara os olhos e a razão (“olhar de conhecer”), para ele dons do Criador:  

(…)

Deu-me olhos para ver.

Olho, vejo, acredito.

Como ousarei dizer:

“Cego, fora eu bendito”?

 

Como o olhar, a razão

Deus me deu, para ver

Para além da visão

Olhar de conhecer.

 

Se ver é enganar-me,

Pensar um descaminho,

Não sei. Deus os quis dar-me

Por verdade e caminho.

Fernando Pessoa devora o mundo com os olhos. Numa de suas páginas íntimas, provavelmente de 1910, registra: “Há poesia em tudo — na e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade — não o neguemos — facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho (açougue)”.

O “espetáculo do mundo”, porém, ele o vê, com reforço, por meio do que chama seu “sentido interior”: “O meu sentido interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos que — estou convencido — vejo as coisas desta de modo diferente do dos outros homens. Existe para mim — existia — um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma plenitude de sugestão espiritual no espectáculo de uma ave doméstica com os seus pintainhos que, com ar pimpão, atravessam a rua. Encontro um significado mais profundo do que os terrores humanos no aroma do sândalo, nas latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois papéis sujos que, num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo. E que poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da sua queda, atónito com as coisas. Como de alguém que conhecesse a das coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas de nada mais se recordando”.

Essa visão espectral, que vislumbra “a alma das coisas”, é o exato oposto do olhar de Alberto Caeiro, o poeta panteísta da , que toma as coisas pelo que elas parecem ser, como ele diz num poema de O Guardador de Rebanhos:

 

(…)

«Constituição íntima das coisas»…

«Sentido íntimo do Universo»…

 

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

É incrível que se possa pensar em coisas dessas.

É como pensar em razões e fins

Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores

Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

 

Pensar no sentido íntimo das coisas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

 

O único sentido íntimo das coisas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

 

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, Aqui estou!

 

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos

De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,

Não compreende quem fala delas

Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

 

Mas se Deus é as e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

(…)

Alguém já deve ter explorado os pontos de contato do  Caeiro com o Bashô e os outros mestres do haicai, hipótese que merece uma boa pesquisa. Antes, quero ler as 1088 páginas da novíssima biografia do Fernando Pessoa, publicada pelo escritor, tradutor e crítico americano-português Richard Zenith (Liveright Publishing Corporation). 

Vou parando por aqui antes que este comentário, que eu pretendia relâmpago, acabe virando uma dissertação sobre as múltiplas visões do vidente Fernando Pessoa, que tem um livro sobre a volta de Dom Sebastião escrito “à beira-mágoa… com os olhos quentes de água”. 

Antônio Carlos Queiroz – ACQ – Jornalista. Capa: A mente é maravilhosa. 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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