Para onde nos levará o descaminho da guerra?

Para onde nos levará o descaminho da guerra?

Para onde nos levará o descaminho da ?

Quando vi aquela fila gigante de veículos no rumo de saída de Kiev, capital da Ucrânia, fiquei me perguntando para onde iriam. Num primeiro momento, provavelmente, para as vizinhas Moldávia e Polônia. Mas quantos refugiados poderiam receber? Em que condições? Por quanto tempo?

Por Márcio Santilli/via Mídia Ninja

E o que dizer dos mortos? Na maioria jovens, não importa o lado. Vidas inteiras perdidas, famílias dilaceradas, amores precocemente rompidos. Pode ser que haja vencedores entre os promotores do conflito, mas ambas as nações sairão amputadas e a humanidade será a maior perdedora.

A invasão da Ucrânia pela Rússia não chega a ser uma novidade total. Há sete anos, manifestações maciças de cidadãos da Criméia de ascendência russa levaram à sua ocupação e posterior anexação pela Rússia. A diferença é de escala: estamos diante da maior mobilização militar na Europa após o fim da Segunda Guerra Mundial. Por enquanto, se trata de uma guerra localizada e, como ocorre em região distante, enseja a falsa impressão de que o conflito, embora lamentável, não terá maiores consequências para nós que vivemos na América do Sul.

A questão de fundo é que o presidente Vladimir Putin, há duas décadas no poder, avalia que chegou o momento histórico de reagir à perda de influência da Rússia desde a queda do Muro de Berlim e a derrocada da URSS, a antiga União Soviética. Vê os enfraquecidos pela polarização interna e pelas dificuldades crescentes para intervir militarmente, como na retirada atabalhoada do Afeganistão, ocupado pelo Talebã.

Lógicas imperiais

Putin tem razão em contestar a estratégia da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em incorporar países vizinhos da Rússia, colocando-a ao alcance da sua mira. A manifestação de interesse do governo ucraniano em aceitar o convite para ingressar na Otan foi uma espécie de estopim do conflito, dando à Rússia o pretexto para alegar que invade a Ucrânia para garantir a sua própria soberania.

E não é um mero pretexto, pois a Otan vem aumentando contingentes e instalando mísseis em países do leste europeu, que vão além das demandas de defesa e configuram estratégias ofensivas. Isso ajuda a explicar a preocupação russa com a pretendida incorporação da Ucrânia à Otan.

Porém, invadir e bombardear unilateralmente a Ucrânia, matando e destruindo, é uma aberração irracional e violenta. Um suposto remédio muito pior do que a suposta doença. A “razão” russa carrega uma ameaça implícita à Estônia, Letônia e Lituânia, que já foram incorporadas à Otan , assim como à Finlândia e à Suécia, que também estão convidadas a integrá-la. No meio dessa já instalada, um porta-voz do governo russo fez ameaças explícitas de retaliações, inclusive militares, contra a Finlândia e a Suécia, que responderam reafirmando a intenção de levar adiante a sua adesão à Otan.

É evidente a vantagem militar convencional da Rússia em mover o peso do seu exército sobre os países vizinhos, deixando para o Ocidente o ônus de aprofundar a guerra. Mas parece que Putin não percebe ou não se importa com a fragilidade implícita na sua incapacidade política de adensar relações de cooperação econômica, social e cultural com os seus vizinhos, fora da lógica imperial. O uso recorrente da força é, também, expressão de fraqueza.

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Foto: Getty Images

Ainda que a Rússia não avance suas tropas para além da Ucrânia, os impactos políticos, econômicos e humanitários dessa invasão irão muito além da zona de conflito. A guerra cibernética já está intensa e deve atingir países e sistemas de no mundo todo. Alertas foram emitidos para que todos reforcem os seus sistemas de segurança digital, mas é difícil avaliar a extensão dos danos que afetariam os serviços em geral.

Por outro lado, foram anunciadas duras sanções econômicas contra a Rússia, que devem suscitar retaliações, impondo uma dinâmica de confronto nas relações comerciais e nos fluxos de capitais entre os países. Essas medidas estão provocando quebras no fornecimento de produtos e altas nos preços das commodities, alimentando a inflação. É improvável que essas sanções, por si só, contenham o Putin, mas já complicam a recuperação econômica no pós pandemia.

Outra dimensão do conflito é a guerra de informações. A Rússia acionou o seu aparato de propaganda para fazer crer que combate um governo “nazista” e que o conflito teria começado com a queda do governo anterior, pró Rússia. Porém, não fala da anexação precedente da Criméia a não há como abstrair o fato de que as suas tropas se encontram em território ucraniano e que a ofensiva rumo a Kiev, a capital, encontrou muito maior do que Putin esperava. Com isso, será obrigado a ampliar o ataque, os danos, o sofrimento e as baixas de ambos os lados. Pelo menos no Ocidente, ele está isolado, perdeu a guerra de versões e ficou com a pecha de agressor.

A China vem adotando uma posição cautelosa diante do conflito, mas de apoio à Rússia – de acordo com a aliança estratégica entre os dois países, anunciada durante a visita de Putin a Pequim, em fevereiro, na abertura dos Jogos de Inverno. O presidente Xi Jinping condenou as sanções econômicas e a ameaça representada pela expansão da Otan que, recentemente, decidiu alocar submarinos nucleares na Austrália, aumentando a tensão no Pacífico Sul. Ainda não sabemos se a aliança com a Rússia e a guerra na Europa poderão levar a China a invadir Taiwan, em vez de optar pela via política, que levou à incorporação pacífica de Macau e de Hong-Kong.

Deterioração da vida

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Foto: Agencia Lusa

Até ontem, já se falava em mais de dez mil soldados e civis mortos. A União Europeia contabilizava o ingresso de 680 mil refugiados vindos da Ucrânia. Protestos contra a guerra estão sendo reprimidos em São Petersburgo e em outras cidades russas, cuja população já sente o impacto das sanções econômicas e tenta se proteger da desvalorização brusca do rublo. A extensão da guerra vai deteriorar ainda mais as condições de vida.

A eventual permanência do clima de guerra tenderá a reaquecer a corrida armamentista e a indústria bélica, desviando para esse fim recursos essenciais para a superação da pandemia e o combate à miséria e ao aquecimento global. Essa inversão de prioridades ocorre num momento crítico para a vida na e para a própria sobrevivência humana.

Além dos impactos violentos e generalizados provocados pelas mudanças climáticas, o mundo vive uma exaustão sem precedentes dos recursos naturais, em geral, e da água, em especial. A desertificação avança e é cada vez mais difícil e custosa a para os mais pobres. A guerra só pode agravar a já dramática situação.

Não podemos ignorar que, em 1945, quando terminou a última grande guerra, a população mundial era de 2,3 bilhões de pessoas. 77 anos depois, somos 7,8 bilhões! Se os custos humanos, materiais e civilizatórios daquela guerra foram gigantescos, imaginem o que significará uma eventual expansão do atual estado de guerra.

Não é que a humanidade, genericamente, tenha enlouquecido. A grande questão é que há os “donos da guerra”, os dirigentes que reforçam os seus podres poderes nesse clima, os que lucram com a morte dos outros e com a destruição do meio ambiente, além dos que se deixam manipular, por oportunismo, ignorância ou imposição, por esses jogos genocidas de poder.

Apocalipse Now

Com tantas inspirações, vale a pena dar uma relida no do Apocalipse, parte final das Sagradas Escrituras. Os elementos formadores do Armagedom já vinham povoando esses últimos anos de pandemia, com profusão das , desastres naturais e crises humanitárias. Faltava a … guerra!

A boa notícia é que o Apocalipse não tem nada de apocalíptico e significa revelação, ao contrário do que muitos cristãos imaginam, ou uma “descoberta de grande conhecimento”. Para além do Armagedom, que é o osso a ser roído agora, o que nos espera é um reino de mil anos de felicidade. Sendo assim, o melhor que podemos fazer é lutar contra essa guerra!

Sem prejuízo das agendas emergenciais relativas à reversão das desigualdades sociais e das mudanças climáticas, urge, também, restabelecer a agenda da paz. Não chegaremos ao reino da felicidade sem promovermos um cessar fogo imediato e a desmobilização das tropas. Deveriam ser retomadas as negociações, no âmbito da ONU, para o desarmamento global, levando em conta os pontos de tensão que levaram à crise atual e a reconversão progressiva dos efetivos e dos orçamentos militares.

Já passou da hora de superarmos a cultura política que divide o mundo em blocos antagônicos de países. Que os povos disputem entre si a primazia nos esportes, na economia e no desenvolvimento científico e tecnológico, mas que se eximam, definitivamente, de ameaçar e de atacar outros povos militarmente. Precisamos discutir a reconversão da Otan e da aliança entre a China e a Rússia – fundadas na cumplicidade diante da agressão a outros povos – em um sistema global de defesa civil, que nos permita encarar os duros desafios do século livres da síndrome suicida da guerra.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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