“Mergulho para sentir a areia fria no fundo do rio. Se eu não realizar uma caminhada na floresta, não consigo encontrar o equilíbrio. Para nós, indígenas, fé, crença, religiosidade é tudo e está em todos os lugares.” – Ely Macuxi
Partiu mais cedo o Ely Macuxi, que Nhanderu o receba com festas. Escritor indígena amazonense, Ely Macuxi, morre vítima da Covid-19. Ely Macuxi, parente do povo Macuxi, da Terra Indígena Raposa da Serra do Sol (RR), era professor, escritor e assessor do Conselho de Educação Escolar Indígena do Amazonas (CEEI/AM). Ely foi um defensor incansável da educação escolar indígena de qualidade, respeitando a cultura e saberes tradicionais.
Seus estudos e escritos sempre estiveram acompanhados de um firme compromisso com as lutas sociais, especialmente junto ao movimento indígena. Ele, Ely, é o cara, porque sua experiência profissional, seus estudos e seus escritos vêm acompanhados de um compromisso inarredável com as lutas sociais.
ELE, ELY, É (era) O CARA
Por José Ribamar Bessa Freire
Prezado leitor (a), me responde rapidinho:
A partir daí, inicia-se o processo de ordenamento e tradução do sonho para, então, fazer a síntese da história; em seguida, amplio em capítulo, tentando visualizar o início, o meio e o fim da história… Convencido de que a história é razoável e coerente, elaboro alguns diálogos, colocando os nomes dos personagens e suas características físicas e psicológicas, os contextos, paisagens… Enfim, é uma produção literária comum a quem escreve e quer transmitir mensagens.
O tempo de elaboração e conclusão dos meus textos é aberto e não corresponde a uma sistematização cronológica, metódica de pesquisar e escrever. Escrevo nos momentos livres, já que me dedico à docência e assessorias antropológicas no Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Amazonas – CEEI/AM.
Posteriormente, entrei na Igreja Católica, na condição de seminarista, passando a ter acesso aos conhecimentos, tidos como universais, a ciência e a filosofia. Nesse processo, dois aprendizados: ler e escrever. Não servia para ser padre, era muito rebelde, disse-me o reitor.
Então, fora da vida religiosa, fui ser professor de História e Filosofia, o que me obrigava a escrever e contar histórias. Paralelamente, atuava no Movimento Indígena Organizado, elaborando e negociando a documentação de nossas pautas por demarcação e homologação das terras indígenas.
Numa dessas viagens, em São Paulo, encontrei o Daniel Munduruku, que me convidou para contar uma “história de índio” em um evento literário e, neste, havia um representante da Editora Paulinas – que gostou tanto da história e convidou-me para publicá-la. Desse dia em diante, começaram a me chamar de escritor.
Mas, creio que os críticos literários devem ter algumas preocupações ao tentar enquadrá-la em algum sistema, ou estrutura, como entender que se está analisando textos escritos por representantes de povos, de diversidades, com concepções de mundo e de escrita completamente diferentes da cultura geral brasileira. Que existem outros tipos de simbolismo e grafias, outras formas de registrar as histórias além da oralidade e da escrita que se convencionou no ocidente. É fácil perceber isso nos vestígios deixados pelos antepassados indígenas, nas pinturas corporais, nos desenhos que enfeitam nossas malocas, formas e estéticas da cultura material.
Considerando que uma das dimensões da Literatura é expressar os valores e verdades de seu tempo, recebendo o corolário ideológico de seus contextos, interesses de seus produtores e divulgadores, em muito depende das versões de quem conta e como se contam as histórias. Assim, é preciso considerar – salvaguardando os ideários e as boas intenções de muitos escritores e correntes literárias – que houve muitas produções que distorceram nossas histórias, traduzindo-as como mitos, lendas, ou parlendas, naturalizando-as como folclore; outros, maldosamente, traduziram-na como ficção e magia… Equívocos que alimentaram preconceitos e discriminações ao longo do tempo, reificação de imagem de povos detentores de cultura primitiva, moradores de ocas, caçadores, coletores, falante de línguas estranhas, eternos moradores das florestas.
Assim, o movimento que hoje é denominado de “Literatura Indígena” é uma forma de expressão de um coletivo de escritores de origem indígena cuja função é dialogar com a sociedade nacional por meio da escrita, levando ao conhecimento de todos histórias mais reais sobre nossos povos, nossos conhecimentos desenvolvidos ao longo de séculos, filosofias e ciências; formas coerentes e consistentes de adaptabilidades aos ecossistemas, sociabilidade entre todos os seres, assim como a harmonização entre cultura e natureza enquanto formas simétricas de complementariedade sociais e espirituais.
Podemos, assim, dizer que a Literatura Indígena é diferente por abranger textos escritos por autores indígenas, mas – sobretudo – por trazer entre suas linhas a mensagem de vozes ancestrais, ensinamentos, conhecimentos, valores, riqueza cultural que orienta a forma de viver de 305 povos que, hoje, sobrevivem no Brasil.
É uma Literatura de resistência porque escreve sobre um segmento estigmatizado historicamente, violentado em seus direitos enquanto povos tradicionais, que continua sofrendo com as invasões de suas terras, destruição de seus ecossistemas… A Literatura Indígena é filosófica porque escreve sobre modelos de homem e de sociedade, valores, ética nas relações entre os seres vivos; é uma cultura literária porque expressa, pela escrita, formas variadas de linguagens, estéticas, paisagens, histórias e poesias.
Em suas leituras, as crianças ressignificam a história e personagem, reinventam e dão uma tradução muito particular que as ajudam a enfrentar seus medos e a realizar seus desejos… Tamanha responsabilidade deveria sensibilizar os governos e a sociedade em geral para o comprometimento com a oferta e promoção da leitura. Infelizmente, sabemos que isso não é prioridade enquanto política pública, limitando-se a ações pontuais ou de parte dos segmentos que trabalham com literatura, mas sem continuidade e acompanhamento em longo prazo…
Democratizar o acesso à leitura ou formar leitores é um processo embrionário que deveria começar nos lares, aperfeiçoado e motivado nas escolas e em cada canto de rua, das pequenas e grandes cidades. No entanto, isso seria resultado de uma política que enxergasse, na cultura e na educação de qualidade, uma necessidade tal qual o alimento que supre a fome e garante a vida. Não enchemos a barriga, mas alimentamos a alma, a criatividade, os sonhos, desejos, liberdade, comprometimentos sociais, cidadania…
Destaca-se, no entanto, que em contexto indígena existem especificidades, diferenças quanto a entendimento do que vem a ser criança, relacionado às concepções de mundo, cosmologias de cada povo. O universo da criança é amplo e contínuo, como as florestas, rios e montanhas, considerando os lugares de aprendizagem, ritos, regras, lazer e trabalho. Na escrita, o simbólico se dá por meio das imagens criadas na oralidade, histórias contadas, percepções que ela retira dos vários eventos que participa em sua casa, nas festas, nas brincadeiras e rituais – que começam antes mesmo dela nascer – nas rezas, nos cantos, conversas e resguardos.
O espaço de aprendizado dos primeiros anos de vida é a sua casa, sua centralidade, onde se aprende a língua, valores e verdades de sua cultura. A aldeia, ou maloca é a extensão de sua casa, onde todos cuidam, ensinam e vigiam. Embora, existem povos que já estão mais ocidentalizados, sofreram a intervenção cultural dos não indígenas, aldeamentos onde a cidade já chegou a seus terreiros, sua formação e educação já são escolares e não se diferenciam muito de uma criança da cidade. Outra realidade são as famílias de indígenas que vivem na cidade, no urbano. O esforço destas é de como manter a tradição cultural indígena em ambiente onde a língua de dominação é a língua portuguesa. Nesses contextos apresentados, enfrentamos outros desdobramentos, quanto à idade certa para a criança ir à escola, à idade para aprender outras línguas…
Aos colegas professores sugiro leitura, como acabamos de registrar, sem leitura não temos nada a ensinar, literalmente. Para nós professores a leitura tem de ser nosso alimento diário. Através dela pode-se aprender sobre as histórias, a diversidade e a especificidade dos povos indígenas no Brasil. Quanto à leitura de minhas obras sugiro que não se perca a fluência, o ritmo, o humor que tento dar aos enredos. Não são histórias de medo, terror e, sim, de estripulias, molecagem, diversão e alegria, bem próprias do mundo da criança.
O curumim gosta do engraçado, de sorrir, de se alegrar. Se os educadores conseguirem, antes de começar a contar a história, fazê-las viajar em seus imaginários para dentro das florestas, das aldeias, sentirem o cheiro das árvores e flores, o barulho dos rios, os assobios dos pássaros, entre outros animais, as crianças poderão usufruir de ricas experiências sensoriais que a ajudarão a compreender e a enxergar que as histórias de curumim são boas e são legais, ensinam a brincar e ter responsabilidades. Histórias que aprendi e vivi na minha Maloca enquanto curumim, no Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima.”
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