Pedro Bunda: “E assim eu vim ao mundo”
Por causa do aleijume nos fundo, recebi o apelido de Pedro Bunda. Eu nasci bem lá no meio do Cerrado. Conheço quase todos os seus segredos.
Por Altair Sales Barbosa – adaptação do texto original de Clodomir de Morais
Eu sou Pedro Bunda.
Minha mãe morreu no momento em que nasci. Do meu pai não tenho notícia. A finada Sabina Parto-Bom foi a parteira que me aparou.
Dela tenho vaga lembrança. Seu João Cego-do-Outro-Lado, vizim de Agnelo, que anda perseguido por todos os gerais e cafundós, foi quem contou do meu nascimento.
Lembro-me ainda das suas palavras:
– A veia Sabina Parto-Bom, costumada com parimento, derna de bicho do mato inté passarim da casca de ovo, só não vingou salvar a mãe, mas os nascidos escapou. Foro que naugurou a bacia dela, de flandre, novinha em folha.
Trabalhava dez anos com uma gamela de imburana já quase furada de lavar e raspar gosma de parto.
O restante era uma tesoura de cortar tripa, cordão, fumo e cachaça alcanforada pra amarração e cura do umbigo e ainda toalha curada na fervura das folhas de hortelã miúdo.
Era a mais confiante aparadeira daqueles tempos que os povo dos tabuleiro da Tamarana tinha.
Pensa que tinha nojo dos partos? Qual quê! Colhia os meninos que nem gente colhe algodão de flor, cuidando pra não ter só uma banda. E sempre dizia: “Todo trabaio do mundo rende a mesma medida.
A colheita da plantação só é alegre, mode a semeia que é suada. Na dos vivente só é triste mode que no plantio só teve gozo. Tudo que veve no escuro do ventre vê a luz mermo adispois de morto, se Deus não ajuda, a Nossa Senhora do Bom Parto dispensa”.
Setestelo já tava em riba; galo cantando, noite caduca, quando Deus se fez servido.
Todo mundo se esconjurou tremente de medo e variante nas ideias más, quando viu aquele macaquim de oito pés chorando pelas duas cabeças que tinha. Santo Deus, orai pro-nóbis! Não era bicho nem nada. Vieram foi apregado, os dois, pela bunda de trás, só um lado, como Deus fez, na denúncia do pecado e do malfeito. Mãe morta pra assombro dos pecadô.
A mãe foi enterrada no canto da porta, pro nascido não chorar longe dela. Leite de duas pretas e de duas cabras paridas, mais chotão de farinha de mandioca e rapadura, com a graça de Deus escaparo do mal-de-sete-dias.
Conhecente do mistério, Sabina Parto-Bom só deu por terminado o serviço e a caridade quando retaiou os dois mambaços mode separar o agregado. Febre, postema supurante sem reima, quandé-fé ficaro bom. Só vendo se crendo.
E assim eu vim ao mundo. Por causa do aleijume nos fundo, recebi o apelido de Pedro Bunda. Eu nasci bem lá no meio do Cerrado. Conheço quase todos os seus segredos.
Eu nasci lá no Cerrado
No Cerrado me criei
Vendo planta, ouvindo bicho
Entendendo a sua lei
Amolando a minha enxada
Minha roça eu plantei
Pisei em cabeça de frade
Muito espinho eu entortei
Acordei um catingueiro
Na sombra do pequizeiro
Mais que ele eu assustei
Cerco o fogo com acero
Da mamona tiro azeite
Pra acender meu candeeiro
Armadilha na florada
Marimbondo e abelha
Caindo na teia da aranha rajada
Se planto minha roça
Longe da palhada
Gasto tempo à toa
Capivara gosta
De comer minha roça
Esconder na lagoa
Ararinha canta na serra
Faz seu ninho na barranca
Urutau canta medonho
Quem não conhece espanta
Buriti nasce na água
Na vereda solitária
Do seu fruto eu faço doce
E guardo na sua palha
Jataí é inofensivo
Mas seu mel é decisivo
Pra curar minha garganta
Meu carro de boi
Quando canta calado
Põe azeite no cocão
Quando roda pesado
Ele canta afinado
No tom desta canção.
(Música Segredos do Cerrado de Mestre Arnaldo)
É! Eu sou Pedro Bunda, atravessei a existência às custas de minha inteligência, por isso sou um pouco de filósofo, médico, político e até relações públicas.
Não passo necessidades, sempre colocam no meu alforge uns torresmos, farinha, feijão, arroz, rapadura e sal e, às vezes, algum trocado. Também não sou solitário, tenho amigos que me visitam.
Às vezes, quando a tristeza aperta e a saudade aumenta, vem a vontade de chorar, lembro das canções que aprendi com o mundo e, assim, cantando, adquiro a resistência para continuar vivendo.
Ei Pau Pereira,
Pau de ingratidão,
Todo Pau fulora e cai,
Só o Pau Pereira não.
Clodomir Santos de Morais – Sociólogo, Escritor, Pesquisador, Fundador do IATERMUND. Instituto para o Desenvolvimento do Trabalho no Terceiro Mundo Doutor Honoris Causa por diversas Universidades, faleceu em 2016. Ilustrações enviadas por Altair Sales Barbosa.
Clodomir Santos de Morais nasceu no dia 30 de setembro de 1928, na cidade de Santa Maria da Vitória, na Bahia, foi sociólogo, jurista, advogado, jornalista e escritor com mais de 20 livros publicados – a maioria enquanto esteve exilado do Brasil, durante a ditatura militar.
Da Página do MST
Em sua vasta trajetória, Clodomir atou como militante comunista, deputado estadual e foi uma das lideranças das Ligas Camponesas. Após o golpe militar de 1964 teve seus direitos políticos cassados e chegou a ser preso junto com o educador Paulo Freire.
Mesmo as penas da truculência do sequestro e da tortura do regime militar fascista não conseguiram quebrar a altivez e a consciência revolucionária de Clodomir Morais, que chegou a sofrer cassação dos seus direitos políticos e exílio.
A repressão vivida só fez Clodomir aumentar suas convicções por justiça social. Depois de passar por vários países, fixou-se na Alemanha Oriental, onde se tornou mestre e doutor em sociologia, com a tese: Elementos de Teoria da Organização, na Universidade de Rostock – instituição em que também foi professor visitante.
No Chile, Clodomir especializou-se em Antropologia Cultural pela Universidade do Chile e em Reforma Agrária pelo Instituto de Formação e Pesquisa em Reforma Agrária (ICIRA).
Seus estudos e prática lhe permitiram criar uma famosas tecnologias sociais de organização massiva, conhecida como Método da Capacitação Massiva (MCM), método este que integra o Laboratório Organizacional (LO), também conhecido como Laboratório Experimental, que é referência mundial até os dias atuais no processo social de organização da classe trabalhadora camponesa.
Seu trabalho nessa área foi reconhecido mundialmente, ao ponto de a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a outra agência da ONU dedicada à agricultura (FAO) contratarem-no para ser Conselheiro em Capacitação e Organização de camponeses em processos de reforma agrária.
Posteriormente, ainda pela Organização das Nações Unidas, Clodomir dirigiu projetos da organização em países como Honduras, Panamá, México, Portugal. Também assessorou a Reforma Agrária de países como Peru, Costa Rica e Angola.
Ao retornar do exílio em 1979, Morais foi professor da Universidade de Brasília (UNB), onde fundou o Instituto de Apoio Técnico aos Países do Terceiro Mundo (IATTERMUND), de exercitou na prática de projetos baseados em seu método, com uma equipe multidisciplinar, com técnicos da América, Europa e África.
Até os dias de hoje seu método de capacitação massiva segue vigente, atual. Clodomir também viveu e lecionou em Rondônia por cerca de 20 anos, inclusive como professor na Universidade Federal de Rondônia (UNIR), que o homenageou com o título “Dr. Honoris Causa”.
Por onde trabalhou o professor Clodomir Morais recebeu inúmeros prêmios de organizações campesinas, e também do Conselho de Reitores da América Central e ainda, como professor visitante e conferencista em várias universidades da Europa, África e na Ásia.
Aos militantes, dirigentes e estudiosos da luta pela Reforma Agrária, Clodomir deixou um grande legado de sabedoria no interminável trabalho de organização e de formação de quadros no movimento operário e dos camponeses pobres. Lutou vigorosamente em defesa da reforma agrária até o final de sua vida, em 25 de março de 2016.