Por que ignoram Nestor Nascimento?
Vereadores de Manaus aprovaram PL que retirou homenagem dada a líder histórico do movimento negro do Amazonas e prefeito sancionou. Decisão revolta.. .
Por Leanderson Lima/AmazôniaReal
Manaus (AM) – A batalha da memória contra o esquecimento foi um tema que o ícone do movimento negro do Amazonas, advogado Nestor José Soeiro do Nascimento, defendeu por toda a vida. Na década de 1970, durante a ditadura militar, ele foi brutalmente torturado quando fazia parte do movimento estudantil no Rio de Janeiro. Perdeu todos os dentes da arcada superior da boca, depois de ser socado por horas. Sobrevivente, decidiu que jamais usaria uma prótese dentária na vida para que aquela violência não fosse esquecida.
A atuação de Nestor Nascimento ultrapassou o campo da advocacia. Foi jornalista, militante, um dos fundadores do Movimento Alma Negra (Moan) e sócio-fundador da Escola de Samba Vitória-Régia. Ele recebeu vários reconhecimentos ao longo da vida e sua militância teve repercussão e projeção nacional e internacional.
Nestor Nascimento morreu aos 56 anos em 2003 e, dez anos depois, foi homenageado ao virar nome de uma praça no bairro Praça 14 de Janeiro, na zona sul de Manaus, onde passou a maior parte de sua vida, por uma indicação do então vereador Bosco Saraiva. Mas, na semana passada, a homenagem foi jogada no lixo.
No último dia 23, o prefeito de Manaus, David Almeida (Avante) sancionou o projeto de autoria de um vereador de seu partido, David Reis, presidente da Câmara Municipal de Manaus (CMM). Reis propôs mudar o nome da praça para “Oscarino Peteleco”, o ventríloquo Oscarino Varjão, morto em 2018. A ignorância sobre a história de Nestor Nascimento por parte dos vereadores e do prefeito de Manaus surpreendeu as lideranças negras.
“Pegar um artista que botava um boneco preto, que fazia algumas piadas racistas do tipo ‘vem cá boneco de piche’, foi um erro tão grotesco, que chega a ser algo inacreditável”, desabafou Christian Rocha, do Instituto Nacional Afro Origem.
Christian Rocha do INAO (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
“O que nós estamos presenciando aqui, nesta praça, é uma tentativa de invisibilizar a luta de militante do movimento negro que foi importante para o Estado do Amazonas e isso não pode acontecer”, disse o pesquisador Vinícius Alves, que há cinco desenvolveu uma pesquisa sobre a comunidade quilombola barranco de São Benedito, transformada em dissertação de mestrado na Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
Só depois da pressão e da mobilização de lideranças negras, David Almeida decidiu revogar a decisão, conforme nota divulgada pela Prefeitura de Manaus.
Antes de confirmar a revogação, o procurador geral do município, Marco Aurélio Choy, já havia se manifestado ser favorável à revogação, em conversa com as lideranças da mobilização e se comprometeu pessoalmente que encaminharia a revogação. Ele também disse que iria pedir melhorias nas estruturas da praça e que seria erguido um totem no local para homenagear a memória de Nestor Nascimento.
Os ativistas foram na quarta-feira (28) até a Câmara Municipal de Manaus (CMM) para tentar falar com o autor do projeto, vereador David Reis, que não se encontrava no local. Apesar disso, receberam a indicação, por parte de seu gabinete, de que o projeto de revogação seria votado em regime de urgência, na próxima segunda-feira (2), data que a casa legislativa vai retornar às atividades.
Ocupação na praça
Mesmo após a resposta aparentemente positiva, os movimentos sociais fizeram um ato de ocupação na praça na própria quarta-feira para lembrar e resgatar a memória de Nestor Nascimento, que é desconhecido de grande parte das novas gerações.
Durante o ato, o secretário municipal de Limpeza Urbana (Semulsp), Sabá Reis, pai do vereador David Reis, compareceu à manifestação e decidiu falar, tentando explicar a proposta do filho. “Eu quero aqui ajudar a corrigir um equívoco. Foi dito a mim que essa praça não tinha nome. E me pediram para colocar o nome do Oscarino Peteleco”, disse o secretário.
“Falta de respeito! Você tem uma equipe para fazer isso (consultar informações históricas)! A gente não é burro, não! Equívoco são esses parlamentares fundamentalistas! Racismo não é equívoco! Fora! Fora!”, retrucaram os manifestantes.
O clima esquentou e os representantes dos movimentos sociais pediram a imediata saída do secretário do local. Depois de muita gritaria e bate-boca, o secretário se retirou.
Moradora dos arredores da praça, a viúva de Oscarino Petelco, Dina Varjão, de 64 anos, disse estar chocada com toda a situação e desolada com o cancelamento da homenagem dada ao marido.
“Estou muito nervosa. Não esperava isso tudo. Essa praça era um canto onde o meu marido costumávamos vir antes de ficar doente. Quando recebemos a notícia de que a praça receberia o nome dele, toda a família ficou muito feliz. É uma tristeza muito grande isso tudo que aconteceu aqui”, desabafou.
O maior líder negro do Amazonas
Um homem à frente de seu tempo. Nestor Nascimento nasceu de origem humilde e cresceu nas ruas do bairro Praça 14 de Janeiro, conhecido reduto da população negra do Amazonas, e berço do samba, onde nasceu a Escola de Samba Vitória Régia.
Nestor cumpriu um destino bem diferente da maioria esmagadora daqueles que nascem nas comunidades negras do Brasil. “Quando a gente brincava e ele tinha uns 12 anos, ele dizia: ‘Um dia vou ser gente grande’. Era só o que ele dizia. E ele foi estudar fora, e quando voltou, chegou gente grande”, lembrou Maria José Vieira da Silva, de 79 anos, que cresceu com Nestor. “Ele brincava até de político com a gente.”
Foi num campinho de terra batida, próximo a igreja do bairro Praça 14, que Manoel Paixão, hoje com 75 anos, conheceu Nestor. Os dois jogavam bola nas proximidades da igreja. “Foi uma amizade que durou por toda a vida”, recordou Manoel Paixão. “E ele tinha um apelido. Era Puranga. Porque a mãe dele cantava uma música com o nome de Puranga para ele dormir. Então a gente só o chamava assim”, revelou Maria José.
O movimento estudantil
Ativistas dos movimentos sociais fazem um sarau na Praça Nestor Nascimento contra a mudança de nome do local (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
O militante negro não se conformava com o pouco que a vida oferecia aos negros de Manaus e decidiu partir em busca de conhecimento. Foi para o Rio de Janeiro estudar e lá se tornou parte do movimento estudantil. Foi quando acabou preso e torturado pela ditadura militar. De volta a Manaus, formou-se advogado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), na época chamada apenas de Universidade do Amazonas (UA).
“A história dele é muito bonita. Ele teve uma militância na briga pela cidadania, não só da população negra, mas também junto aos LGBTs. Então antes de tudo ele merece respeito”, disse o historiador Cacá Bonates.
Para o pesquisador Vinicius Alves, Nestor surge como um agente intelectual orgânico da comunidade negra amazonense. “O Nestor é bisneto da negra maranhense que chega no final do século 19 aqui em Manaus, a dona Maria Severo Nascimento Fonseca. O Nestor e outros homens e mulheres ajudaram a construir a trajetória histórica dessa comunidade que é centenária aqui no bairro da Praça 14”, disse.
Racismo estrutural
Luciana Santos, da Comissão de Igualdade Racial da OAB-AM)
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Para a advogada, ativista, jornalista e representante da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Luciana Santos, o episódio envolvendo a mudança de nome da praça revela mais que uma ignorância histórica. “O racismo cultural é uma das faces do racismo estrutural inclusive é um problema que a gente tem muito grave na questão quando você faz uma queixa do crime de racismo, a tendência do Judiciário é sempre amenizar porque eles levam em consideração que foi uma piada, que é algo cultural, mas não é”, explicou.
Luciana também ressalta o pioneirismo de Nestor. “Numa época em que ninguém tinha coragem de se assumir como negro e lutar por essas causas, ele foi lá e colocou a cara a tapa. Ele não pode ser mais uma figura invisibilizada. A invisibilização é um dos vieses do racismo. Você não mata fisicamente, mas você mata a memória”, assinalou.
Presente ao ato de ocupação da praça, a prima de Nestor, a pedagoga Rafaela Fonseca da Silva, 46 anos, revelou a tristeza da família de Nestor com o absurdo da situação criada pelas autoridades. “Não desmerecendo o seu Oscarino, que morava aqui próximo, que conheci quando era pequena, e o trabalho dele também, mas a gente ficou assustado também porque Nestor é referência do povo Negro”, disse.
Presença negra
A historiadora Patrícia Melo (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
A historiadora Patrícia Melo, que trabalha há mais de 20 anos pesquisando a história indígena e a escravidão africana no Amazonas, e é responsável pela organização do livro “Presença negra no Amazonas”, analisou o ato da Câmara Municipal como mais uma expressão do racismo estrutural e do processo apagamento da presença negra no Amazonas.
“A população negra sofre duplamente. O racismo estrutural e esse processo de apagamento de sua presença que é brutal e que é a marca desse estado, porque a negação da presença negra é reiterada, ou seja, quando a Câmara mesmo alegando ignorância, de não saber do nome da praça, não saber reconhecer a figura do Nestor, só vai de encontro ao que estou dizendo: a presença negra no Amazonas é sistematicamente negada, invisibilizada e apagada. Essa ação da câmara é mais uma prova cabal do que a população negra enfrenta no Amazonas enfrenta”, disse.
Autor do projeto de lei que alterou o nome da praça, o vereador David Reis, disse por meio de nota que “não houve, da parte dele, a intenção de apagar ou macular a memória e a honra de Nestor Nascimento”.