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Sobre os povos In-Sem: improváveis, intraduzíveis, e, para minha grande alegria, indomáveis!

Sobre os povos In-Sem: Já no primeiro contato cabralino foram promovidos  a categoria de não-ser: eram ao invés de estarem. Canibais, pelados, impudicos (uhh!), imberbes, inconstantes, indisciplinados, improváveis, intraduzíveis, imprestáveis e, para minha grande alegria, indomáveis. Foi aí que surgiram os povos In-Sem (o prefixo de negação junto com a preposição de ausência não se deve confundir com ginseng), aqueles que supostamente nada tinham e com quem nunca se poderia contar porque nada queriam com nada…

Por: Domingos Bueno

Um dia desses uma pessoa me perguntou se eu gostava de ser antropólogo e músico. Disse que sim, que tinha grande admiração e gratidão pelos assim chamados índios, em particular pelas soluções geniais que ao longo de sua existência criaram para lidar com os parentes, com os vizinhos, com a natureza, com as doenças e com os não-índios e que eu que não sou índio não tenho a pretensão de sê-lo.

Digo isso porque não gosto muito de negócio de brancos versus índios. Brancos quem, cara-pálida? Os europeus brancos do leste ou do oeste? os negros? os japoneses? Eu, moi, sou pela graça de Deus e honrosamente descendente da mistura de italianos do norte e de brasileiros frutos da mistura de índios, negros, portugueses e, salvo engano, até de holandeses dos Guararapes.

Minha desconfiança com rótulos que efetivamente nada indicam vem daí e estende-se para outras inúmeras classificações, rótulos, des-classificações, ‘des-rótulos', julgamentos, sentenças e atribuições com que temos estereotipado as sociedades pré colombianas.

Já no primeiro contato cabralino foram promovidos  a categoria de não-ser: eram ao invés de estarem. Canibais, pelados, impudicos (uhh!), imberbes, inconstantes, indisciplinados, improváveis, intraduzíveis, imprestáveis e, para minha grande alegria, indomáveis. Foi aí que surgiram os povos In-Sem (o prefixo de negação junto com a preposição de ausência não se deve confundir com ginseng), aqueles que supostamente nada tinham e com quem nunca se poderia contar porque nada queriam com nada…

É importante observar que havia um certo tipo de boa vontade do invasor em melhorar a vida dos selvagens (outro nome), através da dominação da pax Portuguesa que, na falta de súditos suficientes para povoar um território dezenas de vezes superior ao seu, teria que  valer-se da cooptação forçada dos gentios (mais um nome) à sua boa Coroa que obrigatoriamente também passava pela submissão ao catolicismo.

Claro que deu tudo errado… Como seria possível que um não-sei-quantos-povos, de troncos e línguas diferentes, com os mais variados modos de vida e que historicamente cultivam relações agonísticas com seus vizinhos de uma hora para outra virassem súditos de D. Manuel?

Mesmo nos dias de hoje, submetidos a 500 anos de assédio do Estado através de seus vários tentáculos, continuam a viver de uma forma que nos causa, simultaneamente, admiração e espanto. Aceitam e desejam recursos materiais e culturais, mas não a submissão; querem a medicina, mas não a indústria da cura; querem a arte, mas não o mercado.

Que gente mais complicada. Mas como é possível conviver com o Estado e não se submeter a ele? Que enorme quantidade de energia se gasta para vigiar, conter e afastar as tentativas de exploração do homem pelo homem?? Então.

A produção do conhecimento antropológico, da alteridade, em particular com relação às sociedades das Terras Baixas Sul Americanas tem sido objeto de calorosas discussões na etnologia ameríndia, sendo de alguma forma recente a reflexão de que nosso ferramental teórico e metodológico nem sempre é polifônico, posicionado quase sempre de fora para dentro, entendendo o primeiro como o nosso em relação ao que eles na verdade consideram como dentro.

Conceitos como música e dança por exemplo tem sido amplamente utilizados (sem notas de rodapé) para explicitar, descrever e as vezes traduzir manifestações culturais que guardam pouca ou nenhuma relação com o que as próprias etnocategorias que insistem, teimosamente, em dizer que determinada palavra não significa música, que isso para eles não é dança,  chamando de coisas muito diversas aquilo que nós insistimos em categorizar como deles. É claro que os índios cantam, tocam instrumentos, dançam, pintam. Mas não é possível transportar ou traduzi-los a partir de conceitos que estão embebidos em historicidade e contextos diversos.

Não sei quantos mitos indígenas foram criados para agradar ouvidos antropológicos ou quantas histórias fantasiosas foram ditas diante de sérios pesquisadores brancos portando poderosos gravadores e rigorosos diários de campo, que as estudaram profundamente e delas construíram constructos filosóficos de grande alcance.

Talvez seja por isso tenho cuidado com os conceitos, termos ou categorias que instrumentalizamos para descrever um determinado traço cultural através de uma expectativa negativa, positiva ou NDA, procurando atribuir a sociedades diferentes características que julgamos fundamentais tanto por sua ausência como por uma presença discordante mesmo que isso não seja ancestral ou de alguma forma consensual para os próprios interlocutores.

Com uma boa dose de cuidado quero dizer que não me cabe questionar a aceitação do que um determinado grupo livremente decida, bem como não tenho, de longe, condições para avaliar em tempo real os impactos, a necessidade ou a durabilidade de tais ações, acertos ou acordos.

Sabemos já há algum tempo através de diferentes pesquisas que as sociedades amazônicas sempre estiveram e estão em contado permanente com outros grupos, embora em graus diferentes, ao longo do tempo trocando, aprendendo, negando, transformando, copiando, reproduzindo, fazendo exatamente o que qualquer outra sociedade do planeta fez e faz: interagir com seus vizinhos, através das trocas e da guerra. Valei-me LS.

Aplicar conceitos exógenos a sociedades indígenas além de perigoso é improdutivo: – Como posso me indignar e questionar um determinado pastor que posta a foto de um batismo coletivo indígena ou as tentativas históricas de sua conversão ao catolicismo se minhas próprias convicções políticas não toleram determinadas práticas tradicionais que eu considero ofensivas ao meu coletivo?

Tenho procurado, às vezes em vão, não me posicionar de forma essencialista em relação às políticas e práticas intervencionistas justamente para não me colocar no papel do colonizador-new-age-pós-moderno-globalizado que, cheio de boas intenções, quer lhes atribuir ou empurrar goela abaixo modelos de dominação que podem até mesmo existir, mas de formas muito diferenciadas, portando sentidos muito diferentes aos nossos. (recentemente conversei com um desses salvadores neo-colonizadores-new-age na aldeia que insistia na necessidade de trocar as redes de dormir por colchões, já que as primeiras não eram muito higiênicas).

Minha veia roussoniana me impele a imaginá-los puros, guardiães da floresta, incorruptíveis e heróicos, o que não me impede de perceber sua constante luta para ajustar-se frente aos inúmeros problemas que toda sociedade tem. É difícil ser índio…. , não pensem que é fácil. Exige renúncia, tolerância, sorte e uma atitude constante de permanecer: é muito mais difícil ficar parado do que movimentar-se, não é?

Mas isso não significa que as sociedades conhecidas estáticas sejam frias – e ai nossa compreensão do movimento e do tempo nos cega – mas que a estática, diferentemente do atrito, não promove a qualidade e a quantidade de calor que imaginamos apropriada a esse  desgaste aparentemente invisível de energia que precisa, entropicamente, dirigir-se a algum lugar. Que lugar é esse e onde seria?

Os índios são muito fortes, independente de serem crianças, adultos ou idosos. Claro que não são perfeitos, mas quem tem sérios problemas com desigualdade, submissão e dominação, com todos os ismos, com identidade, orientação e papel de gênero bem como respeito a diversidade somos nós.. Acho complicado transformar nossos problemas em objetos teóricos e comparativamente levá-los, como o culturalismo fez, aos outros.

Domingos set 2

 

ANOTE AÍ:

Domingos Bueno

Domingos Bueno é Etnomusicólogo, Professor Mestre da Universidade Federal do Acre (UFAC) e Doutorando pela Universidade Federal do Paraná(UFPR).

Todas as imagens desta matéria foram selecionadas por nosso parceiro  Jairo Lima, do blog: http://www.cronicasindigenistas.blogspost.com.br e são de autoria da fotógrafa Alessandra Melo, e foram feitas durante o Festival Shanenawa, na aldeia Morada Nova, Terra Indígena Katukina/.  O evento reuniu os povos Shanenawa, , , Yawanawá e Madija. As excelentes imagens desta fotógrafa podem ser apreciadas em sua página do Facebook: https://www.facebook.com/alessandramelofotografia/

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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