IXORA

Pra não dizer que não falei de Ixora

Pra não dizer que não falei de Ixora

Por José Ribamar Bessa Freire/TAQUIPRATI

“Pelas ruas marchando / Indecisos cordões / Ainda fazem da flor /Seu mais forte refrão / E acreditam nas flores / Vencendo o canhão.”()

– Vovô, como é o nome dessa flor?

A pergunta da Ana, do alto dos seus 7 anos, me pegou de surpresa. Era uma tarde calma. Estávamos numa alameda do parque onde costumamos passear nos fins de semana.

– Essa flor? … – ga-gue-jei, para ganhar tempo.

– É. Essa flor, vovô! – ela apontou, enfática, uma florzinha alaranjada de pétalas em forma de José Ribamar Bessa Freire pequeno catavento, pendurada na ponta de um ramo, que dançava na cadência de suave brisa. Ao lado dela, bailavam outras da mesma família, todas escoltadas por verdes. Eram pequenas, mas charmosas e desinibidas, com pinta de quererem seduzir polinizadores, borboletas e beija-flores. Hesitei:

– Deixa ver se eu me lembro, essa flor…. essa flor….

Por um momento passou pela minha cabeça dar um chega-pra-lá autoritário, do tipo “deixa de ser curiosa, menina”, o que seria uma infâmia capaz de comprometer a busca do conhecimento. Nem minha neta, nem meus alunos merecem tal “curiosicídio”. Era melhor enrolar, criando um nome científico qualquer, que logo ela esqueceria. Os botânicos não usam o latim para batizar as flores? Pois é. Inspirado em Vandré, posso muito bem inventar que aquela flor é a “Vincere bombardam”, a “Flos resistentiae” ou ainda, neste período eleitoral, a “Inimica centurionis Bolsonarii”.

A FLOR PERDIDA

O canhão vencido vai no caso acusativo, como qualquer bombarda derrotada quando é objeto direto. Como a é da flor, que é inimiga do centurião, ambos vão no genitivo. Os casos e as desinências estão, portanto, corretos. Para algo tinha de servir o “latim de missa” do seminário. Mas desisti, porque é desonesto usar a palavra certa para enganar pessoas, mormente a própria neta. Afinal, é essa curiosidade que empurra a gente e nos faz avançar. O desafio das perguntas incômodas é que nos acercam ao saber. Foi por isso que optei por cometer um “vovocídio”, consciente de que decepcionaria a filha da minha filha, para quem o avô é aquele velho que sabe tudo.

– Não sei o nome dessa flor –admiti, disfarçando o constrangimento.

– Como não sabe? – insistiu Ana, desapontada.

– Sei lá! Minha avó não me falou. Minha se calou. A professora na não me ensinou. A televisão não mostrou. O jornal não divulgou. O livro não publicou. Museu, sindicato e igreja me ocultaram essa flor – denunciei, citando esses e outros aparelhos ideológicos de estado registrados por Louis Althusser.

De qualquer forma, senti que naquele momento murchava a flor do conhecimento que eu fingia possuir para impressionar minha neta. Era um estrago tão grave quanto o dano feito à jovem Dorila, “terna e mimosa”, cantada pelo poeta mineiro do séc. XIX, José Eloy Ottoni. A moça “foi ao prado colher flores”, mas “eis que do prado chorando voltou, confusa e aflita”. Quando lhe perguntavam o que havia acontecido, calada ficava e só emitia gemidos. O poeta matou a charada:

“Que tem Dorila? Os sinais Indicam, a pesar seu, Qu’indo ao prado colher flores, A flor, que tinha, perdeu…”

Quanto a mim, indo ao parque ver flores, a flor que perdi foi a do saber. Fui epistemologicamente desvirginado por não poder compartilhar um saber com minha neta.

VOVOCÍDIO

– Se você não sabe, vou perguntar, então, a minha avó – ameaçou Ana.

– É isso aí! Vai lá! – falei, dando a maior corda. Recomendei que buscasse ainda os dois paternos, ciente de que nenhum dos três saberia responder. Dessa forma, o “vovocídio” seria completo, o que relativiza minha ignorância. Não deu outra. Aliás, qualquer um de nós entra num parque e não identifica as espécies. É tudo genérico: , árvores, pássaros. Fomos afastados da natureza que para nós é uma ilustre desconhecida. Só netos, camponeses e índios conseguem observar aquilo que o urbanoide não vê.

E foi justamente um índio Pataxó que me revelou:

– Ixora! Essa flor se chama ixora, pode ser encontrada nos canteiros e jardins de muitas praças do Brasil. Conhecida também como “cruz de malta”, “chama da floresta” e “trepadeira vermelha”, é um santo . O chá da raiz cura dor de garganta, a folha é usada para o tratamento de pereba e curuba, o caule e as folhas cicatrizam feridas e desinflamam tumores.

– E o que significa na tua língua? – indaguei.

O meu amigo Pataxó respondeu que aquela palavra, cuja pronúncia é icsora, não pertencia à língua Patxohã, era estrangeira, que essa flor nem existia no Brasil, que foi trazida por D. João VI, em 1809, através do Suriname, onde é a flor nacional, que é originária da Índia e da Malásia, que dá o ano todo e prefere o clima quente, que tem várias cores – amarela, vermelha, laranja, cor de rosa, que são mais de 400 variedades. Quando eu quis entender como é que ele havia aprendido tudo isso, me disse que observou, perguntou dos velhos e complementou com o “Google”.

De posse de tais informações, pude me exibir agora para minhas três netas. Voltamos ao mesmo parque, às mesmas flores, no mesmo jardim. Expliquei-lhes que não basta saber o nome de uma flor, que é preciso cuidá-la e defendê- -la como faz Katumbaiá, o espírito protetor da floresta na Pataxó. É assim que a flor pode vencer o canhão do centurião.

JoseBessaJosé Ribamar Bessa Freire
. Escritor. Gestor do
Blog TaQuiPraTi
http://www.taquiprati.com.br

 
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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