Querida Sinhá Isabel

Querida Sinhá Isabel

Neste 13 de maio  seremos lembrados que, numa canetada, uma princesa branca libertou todos os negros escravizados do Brasil. E tenho absoluta certeza de que algumas pessoas, em pleno 2019, celebrarão esse ato de suposta extrema generosidade e compaixão com memes e frases de efeito na minha timeline. Se você é uma dessas, favor persista na leitura.
Por: Leopoldo Duarte, na Revista Fórum
Segundo a história oficial, somos levados a crer que depois de 3 séculos, 358 anos pra ser mais exato e um pouco de pressão econômica da Inglaterra, Isabel foi acometida de um lapso de teimosia e que a levou a assinar a abolição dos escravos. Fofa ela, não?! Mereceu até uma pena dourada pra tornar o momento mais mágico e reluzente. A partir de então, cada homem negro e mulher negra se tornaram livres para desfrutarem da tão sonhada liberdade. E todos viveram feliz pra sempre numa racial. Só que não mesmo!
Negros e negras jamais esperaram paciente e pacificamente por suas alforrias. Diversas foram as maneiras usadas para escapar dos grilhões brancos: cartas, culto a ancestralidade, , fuga, suicídio,…. Enfim, não só os ofereceram resistência contra as injustiças perpetuadas contra negros e negras sob o aval da ciência e do catolicismo da época. A simples sobrevivência naquelas condições sub-humanas deveria ser lembrada como um ato de resiliência ímpar.
Contudo, não podemos deixar de ter em mente que a maior pressão para a abolição veio do movimento abolicionista nacional e internacional, além dos interesses econômicos da nova etapa do que surgia.  Tanto foi assim que Sinhá Isabel não se preocupou em assegurar o bem estar dos milhões de escravos jogados na rua. Todos os anos de suor e sangue nas fazendas não garantiram aos afrodescendentes nem um teto, pedaço de ou qualquer tipo de direito que os elevasse da precariedade a qual nossos antepassados foram sujeitados.
Aboliram as senzalas, mas não as estruturas legais, políticas e sociais construídos em séculos  de colonização racista. Pelo contrário, coincidentemente, pouco antes da Lei Áurea foi feita uma reforma agrária que limitou a posse de terra a quem pudesse pagar. Antes era, basicamente, só ocupar e cultivar. Sem terra nem dinheiro, uma outra saída seria a , mas ainda hoje a elite contesta qualquer tipo de reparação. Imagina no dia seguinte, então…
O problema da cultura ocidental é que acreditamos superar todos os preconceitos do passado a cada passo que damos adiante. Nós ainda insistimos em ver japoneses, apesar de toda superioridade tecnológica, como samurais ou gueishas, e ainda associamos índios a cocares e danças cerimoniais entre outros possíveis exemplos. Contudo nos forçamos a acreditar que séculos de exploração e desumanização de índios e negros foram ultrapassados com uma simples assinatura. Insistimos num final feliz e redentor, e nesse caso, com direito a “princesa” que faz jornada dupla como fada madrinha.
Quando se vive com as consequências desse tipo de barbárie, ou nos deparamos com a inúmeras estatísticas que as comprovam, não dá pra simplesmente engolir tamanha farsa. É triste perceber que há pessoas que celebram o fim de algo do qual deveríamos sentir vergonha de sequer ter existido. Na verdade chega a ser revoltante a forma como algumas pessoas mencionam Isabel como a ovelha de sacrifício que expurgou todos os malefícios cometidos contra os negros.
Fico sinceramente na dú se se trata de um ato de má fé ou de completa ignorância histórica quando me deparo com esse tipo de exaltação. Até porque, achar que tudo terminou do dia pra noite é, no mínimo, muita inocência. Basta olhar em volta para perceber que os trabalhadores que mais são consumidos e escravizados pelo sistema continuam sendo majoritariamente negros. A negligência produzida nas senzalas foi perpertuada nas favelas, o segmento do mercado de trabalho mais terceirizado é negro, os empregos mais indesejáveis continuam sendo ocupados por negros, as vidas mais ceifadas e justificadas são negras e por aí vai…
Talvez por essa versão oficial da história – na qual uma figura branca redime todas as sinhás e sinhôs tupiniquins – ser mais apaziguadora que tanta gente branca prefira acreditar nela, no entanto, apesar de muitos historiadores terem embranquecido e singularizado esse importante episódio histórico, basta dar uma aprofundada na pesquisa para aprendermos que nem o nem tampouco a escravidão acabaram 131 anos atrás. Torço para que um dia nossas negras deixem de aprender a agradecer a liberdade exclusivamente a uma princesa branca. Até lá, só nos resta lembrar…
OBSERVAÇÃO:
Matéria publicada originalmente pela Revista Fórum em 2015, e republicada pelo Geledés em 2019. Datas ajustadas pela Xapuri.
Fonte: https://www.geledes.org.br/querida-sinha-isabel/


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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