Raial: Aprender, aprenda, mas aconteça o que acontecer, não vire branco –
Por Raial Orotu Puri –
Esse texto não se destina a ninguém em particular. Talvez a todos, talvez principalmente a mim. Ele também não trata de um assunto em específico, mas de um emaranhado de questões que se erguem numa pilha, e que tem relação com um equilíbrio que me parece cada vez mais um sonho distante de ser mantido… e que, no entanto, ainda é um desejo a ser perseguido.
Ele tem a ver com a tristeza desse eterno momento presente sem futuro, de prenúncios de morte, de alardes de fim de direitos originários (como se alguma vez nesse mundo os indígenas tivessem algum direito além de morrer! Em silêncio. Sem protestos), de adensamento da invisibilidade, de consagração da indiferença, de palavras vazias.
E ele tem a ver com algumas observações sobre outras tantas questões que emergem no meio dessa luta tão séria. Sobre as armas que se precisa aprender a usar para se defender, sobre até que ponto vale a pena ceder, e onde se deve ceder sem se diluir, sem deixar de Ser. Sobre quanto tempo você pode ficar observando o abismo, antes que ele se vire e olhe para você, como diria um dos meus filósofos preferidos.
Trata-se de um tema que já foi tocado algumas vezes em minhas reflexões, esse contexto de precisar, optar, ou não ter opção, em se viver em eterno desterro. E não, não estou falando de Florianópolis, que pelo menos é bonita, tem praias e a mais espetacular de todas as figueiras desse mundo.
Estou falando de viver na cidade, qualquer uma, sobretudo as grandes. E de fazer isso, carregando sempre a essa impressão de não-pertença, que sei que muitos também partilham. E, principalmente, do quão importante é que essa não-pertença jamais deixe de ser sentida.
Falo também dessa vida ‘compartilhada’ entre pessoas, povos e nações diferentes. Essa espécie de grande jaula com espécies diversas de seres, que por conta das grades são obrigadas ao confinamento coletivo – desconsiderando-se, inclusive, que alguns estão dentro da cadeia alimentar do outro. Isso, a título de analogia sobre viver numa nação multicultural, como essa é grande invenção chamada resumidamente de ‘Brasil‘. É, eu sei. É uma analogia pessimista. Mas ultimamente otimismo está em falta.
Seja como for, pensando em outro dos meus filósofos preferidos, este, francês, já que a convivência tem de se dar, então vamos lá encontrar algo de bom nessa história, não é mesmo? “Não importa o que fazem do homem, mas o que ele faz com o que fizeram dele”, então, o que fazer com o que fizeram conosco? O que fazer já que estamos por aqui? Que seja, pelo menos, aprender e encontrar caminhos para que as coisas não entrem sempre nas ‘vias de fato’, e, acaso entrem, que ao menos não sejam sempre os indígenas o lado que sempre perde, e perde tanto, até a vida. Ou, quem sabe, aprender armas e estratégias que sejam benéficas tanto para o próprio povo, como para poder enfrentar os conflitos quando esses vierem.
Sempre acreditei que, de alguma forma, a vida dos indígenas na cidade, se resumiria a mais ou menos isso: aprender. Aprender o que for bom para poder usar. E aprender também o que for mau para poder evitar e combater. E ouço isso sendo dito de uma e de outra forma nas palavras bem mais sábias que as minhas, vindas de grandes e respeitadas lideranças, como Ailton Krenak, e como o Senhor das Onças, Babau Tupinambá: “é preciso ter alguém para vigiar”/ “é preciso aprender a usar as armas da época”.
Mas, me parece, assim como acontece nos processos de aprendizado em geral, em que se faz necessário fazer alguma avaliação sobre o desempenho do aluno, às vezes é preciso fazer algumas avaliações periódicas sobre o que estamos aprendendo, e, principalmente, o que estamos incorporando como costume, e o quanto isso tem mudado os costumes.
Acredito que em algum momento eu já disse isso, mas acredito que nesse momento cabe repetir. Quando se é indígena, a ideia de transformação, de mudança, de perda ou acréscimo do ser ou do grupo faz muito sentido, e esses são riscos muito evidentes, notadamente porque não nos vemos como seres prontos e acabados.
Para começar, nada garante que só porque temos a forma humana, só porque nascemos humanos, nós o somos por dentro, nem que o seremos eternamente. Não existem garantias de que a humanidade não possa ser perdida em algum momento. E, vale dizer que, numa escala de riscos, entre deixar de ser gente e virar outra coisa qualquer, está a grande ameaça de se viver nesse meio hostil a que me refiro neste texto: virar branco.
(Sim, eu sei… ao dizer isso, talvez esteja trazendo a hostilidade de alguns raion (não-índio) que podem querer me lembrar de que ‘nem todo branco’. Sim, fiquem tranquilos. Não estou falando de vocês, então, não se sintam incluídos.
Me refiro a um tipo específico de branco. Aquele tipo que considera qualquer coisa não-branca como errada, torta e digna de extermínio. Aqueles que adentram em nossas terras, nossos mundos, nossas vidas, para tomar tudo o que temos e transformar em dinheiro – para eles, obviamente).
Refiro-me ao branco na pura acepção da palavra, com tudo de pernicioso que nele está atrelado. Refiro-me principalmente ao risco de que, ao nos aproximarmos demais deles para aprender suas estratégias, acabemos nos esquecendo de quem nós somos, do que viemos fazer, e passemos a viver na ilusão de que podemos ser esses brancos. Achar que de repente esse mundo deles é realmente melhor que o nosso, porque tem benesses que talvez o nosso não tenha, porque aqui existem dinheiro e formas infinitas de gastá-lo. E que esse dinheiro é capaz de pagar por coisas que não têm preço, como o Sagrado.
Como se por acaso alguém pudesse ser louco o suficiente de se achar dono dos verdadeiros Donos de tudo, e colocar preço nEles, e os vender. E que não existe nada de errado em vender o Sagrado e lucrar com ele. Que não existe nada de errado mesmo quando ele é vendido e passado para frente e usado de forma tão abjeta que o simples pensar que nisso já seja uma ofensa tão grande que envergonha e dilacera na alma. Como se fazer isso no nome de algum dos povos não nos envergonhasse a todos. Como se alguém fosse realmente tão ignorante a ponto de acreditar que pode fazer isso impunemente…
Pois é… acho que se fizermos avaliações sinceras sobre o que se tem aprendido, talvez vejamos que os desempenhos precisam ser revistos, melhorados, corrigidos, talvez deletados. Mais ou menos à maneira daqueles jogos de tabuleiro ‘perca dez rodadas e volte para o início do jogo’, ou simplesmente admitir a derrota e sair da mesa de jogo pode vir a ser uma escolha muito salutar, para si mesmo, e para o povo a que se pertence. Porque olha gente, está esquisito. Aliás, esquisito só não. Tá feio, horrível. E, sinceramente, a continuar assim, eu temo que nem eu, a rainha dos pessimistas, e a imperatriz da imaginação fértil seja capaz de imaginar futuro mais sombrio.
Do mesmo modo, a avaliação sobre as estratégias também me parece que não seria muito satisfatória. Lembro-me aqui de outro filósofo, este, brasileiro, já morto, mas cujos pensamentos perduram até hoje em estribilhos musicais: “nos deram espelhos e vimos um mundo doente”, ele cantava ao falar do tempo do ‘Descobrimento’ – leia-se invasão bárbara e genocida, mas vá lá.
Mas e agora, eu fico me perguntando… O que é que nos tem sido dado? E o que é que estamos conseguindo enxergar? Talvez o que estejam dando sejam olhos cegos, e por isso não seja possível ver mais nada…
Talvez tenham dado formas de nos dividir, para melhor subjugar, já que estamos gastando tanto tempo e energia brigando entre nós mesmos que, quando as ameaças chegam, estamos dispersos, enfraquecidos e desmobilizados demais para que possamos reagir.
Talvez tenham dado a forma de julgar e colocar critérios, escalas de pertença, e a ignorância – deliberada e proposital, às vezes – em desconsiderar processos violentos que resultaram no quase extermínio de muitos povos. Talvez tenham dado o mesmo tipo de (in)consciência racista que os brancos administram tão bem.
Talvez sejam papéis o que deem agora. Papéis/computadores e o dom da escrita. O registro. A academia. Os títulos e louvores dela. Mas parece que desta vez o que se entregando é a capacidade de enfrentamento e reação para além de escrever, escrever, e escrever. Sim, eu sei, parece paradoxal que eu esteja escrevendo algo contra a escrita.
Como eu disse de início, este texto era também para mim. Em todo caso, eu não estou falando ‘só’ de quem escreve artigos, crônicas e reportagens. Acho, aliás, que esta é uma missão necessária, porque é sim necessário falar desse tempo, registrá-lo, inclusive para as vezes tentar chamar à razão de alguns. E, de qualquer forma, eu não sou e nunca fui uma guerreira. Eu sou apenas uma sonhadora, e estou bem assim.
E me refiro muito mais ao fato de que só se produza escrita, em um mundo em que ainda somos atacados com balas, cassetetes, preconceito. Refiro-me também ao fato de que, já que produzimos escrita, ela não seja direcionada a instituições que de fato tenham algum peso capaz de equilibrar, ao menos um pouco, a balança na qual os povos originários sempre se encontram em posição desfavorável.
Refiro-me também a uma sensação ruim que tenho cada vez que um momento crítico é vivido, nesse país em que toda semana há um momento mais crítico e pior do que o anterior. Pois bem, como alguns devem ter ficado sabendo, na semana que se noticiou sobre a aprovação de um parecer da AGU que trata de diversas questões atinentes aos direitos indígenas.
O referido parecer, como não deve ter escapado a quem leu, ergue uma lápide sobre a demarcação de terras indígenas, sobre a ampliação de territórios já demarcados, assim como abre margem para uma série de desrespeitos e coerções, tudo ‘legalmente assegurado’.
Como comentei em uma postagem do face, basta dizer que a referida medida foi comemorada por ninguém menos que Luiz Carlos Heinze aquele deputado gaúcho ganhador do prêmio “Racista do Ano” de 2014, por manifestar em plenário sua ‘opinião’ sobre indígenas, quilombolas e homossexuais.
Não por acaso, o referido parlamentar é ruralista, pertencente ao setor obviamente mais bem-sucedido no ramo da gestão dos presidentes brasileiros. E, não por acaso e obviamente também, trata-se o setor que se beneficia diretamente dessa medida, e de todas as outras que colecionamos.
Mas, sei que cabe perguntar, o que essa decisão trará de novo, de fato? Em parte, é realmente só o ‘mais do mesmo’, velho e surrado de cinco séculos atrás: as leis, feitas por brancos, para atender a interesses de brancos, nessa terra que foi espoliada por brancos, e cujo objetivo único sempre foi o genocídio daqueles que não são brancos. Pois é, não chega a ser novidade, mas creio já ter comentado em algum texto anterior – se não o fiz, faço-o agora – que existe uma nada sutil diferença entre uma intenção declarada e uma intenção declarada que é legalmente amparada.
Isto porque, enquanto não há um marco legal, uma jurisprudência, uma instrução normativa e o escambau legislativo, as coisas podem ser ainda objeto de discussão, inclusive judicial, mas a partir do momento em que se tem um entendimento jurídico orientado, as chances de contestação passam a ser menores e mais difíceis.
Mas aí é que está um detalhe que me incomoda talvez um pouco mais do que ‘apenas’ a questão desse parecer: a percepção da apatia, de que está tudo perdido. De que tudo o que resta é chorar, chorar e chorar. E sim. Chorar também é permitido. Também é válido. Também é necessário. Mas não pode ser a única reação.
Tampouco é permitido que essa reação seja apenas a escrita nervosa de notas de repúdio, manifestos e textões no Facebook. Digo isso, porque, por enquanto o país ainda é signatário de uma Convenção, e, por enquanto, a Constituição ainda existe. E sim. Eu sei. Isso não quer dizer muita coisa, num lugar aonde tudo é relativizado, a depender dos interesses de quem pode pagar por eles.
Mas, ainda assim, e apesar disso, esta estratégia, a jurídica ainda existe. E, se de fato aprendemos alguma coisa nesse tempo de convivência forçada, então já devíamos ter feito uso desta ferramenta, ou então que se abra mão de vez dessas estratégias, dessa convivência, desse armistício e se volte para o que existia antigamente, para as guerras de outros tempos, e que se pare de tentar brincar de branco, enquanto ainda há volta, que, acima de qualquer coisa, que possamos sempre fazer parte do lado que luta para combater a doença do ‘mundo doente’ que vemos crescendo dia a dia e se alastrando.
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Para quem não leu o parecer da AGU, segue o link:
*Todas as imagens utilizadas neste texto são do artista peruano Harry Ini Metsa Pinedo.
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC)
Gratidão, Jairo Lima, www.cronicasindigenistas.blogspot.com.br, por nos apresentar mais este belo trabalho da Raial.