UnB-Anos 60: Reflexões sobre a degradação da Utopia
UnB – Anos 60: Reflexões sobre a degradação da Utopia – Do conjunto de prédios projetados inicialmente por Niemeyer, Lelé e muitos outros expoentes, alguns nem saíram do papel, outros foram modificados brutalmente sem que seus agressores pudessem perceber, por ignorância, burrice ou falta de sensibilidade, a essência e filosofia de sua criação. Outros ainda foram destruídos na criação, como um aborto criminoso.
Por A.P. Filomeno
Darcy Ribeiro contou-me em uma de nossas reuniões, sua angústia ao ver tantas ideias tão bravamente defendidas e implantadas sendo modificadas e destruídas por pessoas absolutamente distantes, não integradas ao projeto ou sem o mínimo entendimento do espírito que idealizou as bases originais de implantação.
Assim foi com o Instituto Central de Ciências, ou “Minhocão”, menina dos olhos de Darcy e Niemeyer. Idealizado com 780 metros de comprimento por 80 metros de largura, com três níveis, possuía ainda um fosso ou passarela no nível inferior para o deslocamento de veículos que transportariam os alunos, professores e funcionários de um ponto para outro do longo edifício.
A genialidade do prédio consistia exatamente na sua funcionalidade e simplicidade. Do plano urbanístico do campus, inicialmente projetado por Lúcio Costa, previam-se oito áreas para os institutos centrais, cada qual com edifícios, anfiteatros, laboratórios, salas de aula, etc., compondo no total mais de quarenta edifícios.
O “Minhocão” foi o genial resumo de tudo isso, nascido da cabeça de Niemeyer e transferido para a prancheta e para a realidade física, inovando todo um conceito antiquado em arquitetura de universidades.
Foto: educacao.uol.com.br
Outros projetos de Oscar, como a Praça Maior, abrigando a Aula Magna, a Reitoria e a Biblioteca Central de um lado, e conjunto de anfiteatro, cinema e teatro do outro, foram simplesmente descartados, como o Museu da Civilização, onde estaria uma ampla documentação das civilizações e culturas de todas as épocas.
O campus, [pensado] poeticamente por Darcy e outros idealistas, estaria entre essas construções. Seria um amplo gramado onde professores e alunos descansariam ou estudariam ouvindo música e convivendo de uma forma ampla e democrática.
Outro conjunto projetado que sofreu grandes modificações foi o Centro Olímpico onde morei algum tempo. Era um arremedo do projeto inicial. A ideia de uma praça de esportes, aberta à juventude de Brasília, mesmo aos não-universitários, era uma utopia que só se tornou possível muitas décadas depois.
A UnB foi uma experiência ímpar, sem modelo inspirativo anterior que se pudesse adotar ou mesmo aperfeiçoar. Os padrões dominantes emanavam da Universi-dade do Brasil no Rio de Janeiro. Ao contrário do projeto integrado da UnB, constituía-se em um leque disperso de faculdades, cuja direção era [constituída] por uma reitoria acadêmica, ultrapassada e centralizadora.
As unidades de ensino especializada multiplicavam-se descontroladas, tanto que em 1960 havia 36 cátedras de química repetidas em nove escolas, treze de física dispersas em sete faculdades distintas e dezesseis de matemática repetidas em sete escolas, formando uma dispersão onerosa, improdutiva e sem controle.
As tentativas realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo para reinventar a Universidade em um plano mais fecundo logo morreram no nascedouro. Assim, o que existia antes da UnB era um gigante educacional, desmembrado, meio ineficiente e imerso em seu próprio faraonismo, baseado em autoritarismo educacional, que levou a efeitos pouco eficazes e até nocivos como a Cidade Universitária do Fundão, e a dispersão das faculdades em todo o país.
A área de filosofia foi transformada em mera fornecedora de meros professores ao magistério secundário, e, o pior, a burocratização e a cartorização do ensino superior possibilitaram aos poderosos e influentes criar as faculdades que quisessem, havendo ou não área física e corpo. Multiplicaram-se falsas escolas superiores, deteriorando o que já estaca arcaico e danificado.
Urgia repensar o ensino superior e JK, ao receber e aprovar o projeto ambicionado por tantos, premiou aqueles descontes em detrimento dos defensores da velha ordem.
Esse era o clima de liberdade em que a UnB foi pensada. Era imperativo renovar, já que nenhum molde de ensino superior servia de base às novas ideias emergentes.
Mas quais eram exatamente as críticas ao Sistema Universitário Tradicional às quais os idealizadores e executores da nova Universidade desejavam combater? Podemos resumir:
- Falta de integração que permitisse interagir e cooperar entre si.
- Elitismo exagerado.
- Figura do catedrático vitalício, que controlava cada área do saber, elegendo seu sucessor, dificultando o acesso, às vezes, ao pessoal mais qualificado.
- Professores de pós-graduação deficientes, contribuindo para a má qualificação do professor universitário.
- Colonização cultural dependente de matrizes estrangeiras sem ter um desenvolvimento científico próprio.
- Incapacidade de assimilar o pensamento universitário no termo, engrandecido com pesquisas, e aplica-lo na procura das soluções para os problemas nacionais.
- Temor da co-participação dos estudantes na gestão das universidades.
- Ausência de programa de difusão cultural comunicando a Universidade com a comunidade não-universitária.
- Recursos e verbas mal-utilizados em obras faraônicas e agrupamentos nem sempre utilizados, ou mal utilizados.
Essa avaliação realista e contrastante do ensino universitário chocou a intelectualidade, provocando debates de enorme repercussão. As velhas ideias e o poder dos catedráticos se manifestava, ainda, na “Lei das Diretrizes e Bases”.
A Universidade de Brasília era a exceção inovadora. A partir de então, passaram a existir no Brasil dois sistemas universitários: um arcaico e outro inovador, com a liberdade de repensar o ensino superior e a projetar uma nova universidade.
Contanto, essa revolução não foi pacífica. Quando a reforma universitária de 1968 foi promulgada, o velho sistema já havia transformado o ensino em uma colcha de retalhos, podando em grande parte a liberdade e a criatividade pretendidas.
Antonio Paulo Filomeno – Médico Cardiologista. Escritor. Excerto do livro “De Laguna a Brasília – Luta e Esperança. ” Editora Letra Ativa. 2005.