Sobre Razão, Sagrado Indígena e Insensibilidade
Eu tenho uma parte insensível em meu corpo. Não nasci assim: trata-se de uma espécie de sequela de uma cirurgia que fiz há alguns anos para remover de sob meu braço “uma coisa que não devia estar lá”.
Bom, a operação foi um sucesso, afora a curiosa sensação da pele junto ao local do corte ter ficado insensível ao toque. Não vou me demorar na explicação científica dessa anormalidade, mas tem a ver com o trauma do corte e a destruição de algumas estruturas responsáveis pela transmissão de estímulos nervosos ao cérebro.
Fora algumas fases algo paranoicas a respeito da possibilidade de me machucar e não sentir, o fato em si não chega também a ser uma coisa extremamente desagradável, só é um pouco esquisito ter uma parte de si mesmo que não sente igual às demais. Como já faz uns bons anos desde a cirurgia, tenho a impressão que existe uma probabilidade de que o efeito seja permanente, embora já tenham me falado que demora bastante tempo, mas a pele volta ao normal.
Também me disseram certa vez que se eu tentasse a acupuntura, poderia reverter esse quadro. Pelo pouco que sei sobre esta técnica oriental, ela de fato faz verdadeiros milagres, sendo capaz inclusive de recuperar a sensibilidade e devolver o movimento ‘normal’ a tecidos danificados e músculos atrofiados, sendo eficaz até mesmo em casos graves, como as sequelas derivadas de um AVC, ou de um acidente. Bom, mas meu caso é do tipo ‘não é para tanto’, e vida que segue.
Mas creio que há algo de filosófico nesta questão de ter uma parte de si mesma que é insensível, enquanto o resto sente. E é sobre isso que esta conversa versa, mas o corpo em questão não será o meu, mas um outro, maior e bem mais amplo.
Na manhã de sábado, dia 25 de março, logo após os rituais comuns ao despertar de um dia de folga, abri o Facebook para consultar as ‘novidades’. Como já disse em outras ocasiões, eu tenho uma bolha particular de contatos – e quem não os tem? – e a minha é formada por pessoas que têm mais ou menos os mesmos interesses que eu, razão pela qual os assuntos que assomam à minha timeline giram em torno daquilo que mobiliza o meu interesse, sendo que, obviamente, a luta indígena está no topo dessa lista.
Eis o porquê de uma das primeiras postagens vistas era um pedido de socorro, publicado havia 15 minutos. A autora era Valdeline Veron, que em palavras apressadas pedia ajuda para os parentes da Tekohá Takwara, no município de Juti, Mato Grosso do Sul, que se encontrava cercada por homens armados.
Não por acaso, os ataques vêm nos finais de semanas, feriados, e em recessos do judiciário. Não por acaso também, as investidas são tão mais severas quando existem situações em que a ‘opinião pública’ está com os olhos voltados para outras paragens, como os infinitos desdobramentos de um golpe político, a recente lista dos nomes famosos que serão em seguida esquecidos e eleitos, o evento esportivo/festivo/social com enorme cobertura da imprensa, a passeata que defende aquela tão importante pauta para aquelas 10 pessoas… Mas uma das muitas coisas que a gente aprende em ser fã de quadrinhos do Batman é que ‘a vigilância nunca pode tirar folga, já que os criminosos também não tiram’.
A sensação já é velha conhecida, pois não é nem de longe uma novidade para quem conhece o cotidiano dos parentes Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul (não tão diferente da realidade de muitos outros, Brasil afora). O amanhecer de um céu sem nuvens na paisagem de terra vermelha e poucas matas, arrancadas que foram pela soja que cobre tudo, revelando os contornos do prenúncio do horror que se avizinha: homens encapuzados empunhando armas, trazendo a ameaça e a morte. O silêncio carregado de pavor desse vislumbre é o que basta para a compreensão do que virá a seguir, inexoravelmente.
Nesses momentos é preciso agir rápido, e é assim que chegam os gritos de socorro, lançados no ar ou na rede, para alcançar alguém que escute, e que possa fazer algo, qualquer coisa, o mais rápido possível, antes que seja tarde.
Já há algum tempo têm-se adotado a estratégia de lançar os pedidos de socorro em redes sociais, que devem ser replicados com a urgência do salvamento das vidas ameaçadas, transmitidas a todas as instâncias possíveis, amigos jornalistas, amigos ‘famosos’, amigos engajados em causas correlatas, apoiadores, grupos, listas de discussão, qualquer lugar, seja quem for… o maior número possível.
Trata-se de uma ação que executo em automático, na toada do desespero de alguém que compreende de uma forma muito visceral essa situação, o que pode estar prestes a acontecer. Pois sim: quando se trata de um cerco como esse, as ameaças nunca são vazias.
E sei que essa é também uma ação desesperada, dada a consciência de que, embora seja uma resposta rápida para um momento crítico, não é necessariamente eficaz para a resolução do problema real.
Ninguém é inocente a ponto de acreditar que a divulgação irá impedir sempre que a ação aconteça, apesar disso, algo que a experiência nos tem mostrado é que levar o caso às mídias contribui para inibir um pouco esses ataques, para coibir um pouco os atacantes, para deixa-los com menos certeza de impunidade – ainda que a impunidade ainda seja o tom e a marca funesta de todos os crimes perpetrados contra as populações indígenas no Brasil, desde sempre.
Basta citar que a pessoa que fez o pedido de socorro é a filha do Cacique Marco Veron, grande líder que foi assassinado em 13 de janeiro de 2003, e ainda hoje os seus assassinos permanecem impunes. E o caso dele, é ‘apenas’ um, dentre as centenas que ocorreram no Mato Grosso do Sul.
(…Perdoem-me por colocar o ‘apenas’. Neste caso, eu só queria dizer que não foi o único… Mas Marco Veron nunca será ‘apenas’, porque quem ele era, e por quem ele ainda e sempre É. O fato que quero salientar aqui é que estamos já à beira de completar 517 anos de invasão e genocídio, e que essa situação de perene violência tornou-se ainda mais intensa nos últimos 4 anos, sendo que o Mato Grosso do Sul é o estado que acumula o maior número de casos*. )
Quando se está numa situação tão desesperada, mesmo essa ajuda a princípio tão diminuta é capaz de surtir algum efeito, visto que ao observarmos a história recente dos ataques constantes às Tekohá, é possível perceber que, apesar dos ataques continuarem, as ações brecam à medida em que a opinião pública começa a se levantar.
E sim, obviamente essas ações são apenas gotas em um incêndio sem fim, que somente pode vir a se resolver na medida em que os territórios forem demarcados, e os indígenas puderem de fato ocupar de forma segura e pacífica as suas terras. Enquanto isso não acontece, resta seguir lutando, e recorrendo a toda e qualquer estratégia possível, mesmo aquelas que se assemelham a aparar com as mãos nuas o fio da guilhotina.
O cacique Marco Veron foi morto em um ataque perpetrado contra aquele mesmo local, a Tekohá Takwara, que na manhã de sábado 25/03, mais uma vez se via cercada ao amanhecer. E foi somente ao fim daquele dia que chegaram algumas informações escassas para apaziguar um pouco – bem pouco – o nó no estômago.
O grupo armado, soube-se depois, fazia parte de um grupo tático do exército, fazendo um suposto treinamento. Informação essa que vai ser checada pelo MPF, visto que não chega nem de longe a explicar os relatos de intimidação, truculência e ameaças que foram reportados.
E assim, mais um dia, só mais um dia, se encerra para aquela comunidade no Mato Grosso do Sul. E todos podem voltar ao sossego de seus lares e camas em paz. Sossego? Lares? Paz? Talvez eu possa. Talvez você possa. Mas não os parentes Guarani e Kaiowá, nem os de Tkwara, nem os das centenas de comunidades que seguem há décadas em seus barracos de lona, espremidos entre a soja, as cercas, o asfalto, as balas dos fazendeiros, a omissão e a conivência de um Estado que tem as mãos sujas de sangue indígena.
Talvez… talvez algum pequeno alívio sim, feito de ao menos saber que nesse dia, pelo menos, ninguém morreu. Mas, e a noite? A noite traz consigo o terror de que venha outro ataque, e a dúvida sobre se o amanhã virá ou não com novas surpresas no horizonte…
Mas ocorre que, a reboque do medo, da raiva e da impotência que caminharam comigo nesse dia, surgiu em mim ainda um outro sentimento, embalado por algumas das reações com as quais me deparei.
Já não é de longe que me incomoda nesses momentos o ensurdecedor silêncio de tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos!… que quase todos os dias eu vejo pelas timelines da vida alardeando o seu amor pelo ‘mundo indígena’, pela ‘cultura indígena’, pelos ‘rituais indígenas’ e por ‘seja-lá-o-que-for indígena’, mas que aparentemente não se estende aos indígenas reais, de sangue, carne e ossos.
Sangue, carne e ossos que jaz sendo violentada e morta, sob a conivência omissa de tantos. Parafraseando algo que ouvi do movimento negro: parece que “está na moda ser índio, desde que você não seja índio”.
E vejam, não me incomodo, não tanto assim pelo menos, com a omissão dos que por natureza já são omissos. Esses que não querem mesmo nem saber, nem ouvir falar, nem estão nem aí para a nossa existência. Quando um reacionário alienado age como um reacionário alienado, ele não está fazendo muito além daquilo que já se espera dele no fim das contas!
Agora chega a ser doloroso ver pessoas altamente ‘engajadas’ em movimentos vários, inclusive ao próprio movimento indígena, que se mostram indiferentes a uma causa que pretensamente defendem. (E não estou falando isso de forma desvinculada da minha experiência, visto que até piadinha eu já tive de aguentar perante pedidos de socorro!)
Cada vez mais me incomoda profundamente o fato de que tenha tanta gente que se avoca ‘quase índio’, de tão iluminado e cheio de conexão com os povos originários, que não mede esforços para participar dos rituais regados às medicinas tradicionais, que compra tudo quanto é peça de arte indígena para se trajar de maneira ‘típica’, que se diz participe e seguidor do ‘sagrado indígena’ (seja lá que for que a pessoa queira dizer com isso), que vive compartilhando mensagens iluminadamente xamânicas, mas que em um momento como esse simplesmente ignora um apelo para ajudar, mesmo que o pedido compreenda algo tão simples quanto divulgar um pedido de socorro.
Em tempo: a princípio, não existe nada de errado em participar de rituais de medicina sagrada; não existe nada de errado, e é até positivo, comprar objetos produzidos por indígenas, visto que contribui para a economia e a valorização da arte indígena; e não existe quase nada de errado no compartilhamento das mensagens iluminadas de xamãs iluminados. (Sobre o Sagrado… bom, aí existem ‘alguns vários’ problemas a apontar… mas é coisa para outro texto e ocasião…)
Enfim, o que quero deixar claro, é que este texto não está posto para criticar aqueles que se interessam pelas culturas indígenas ou que adquirem produtos produzidos por indígenas. Meu alvo é um bom tanto aquém disso.
Esse texto não é sobre vedar o acesso dos brancos às culturas indígenas. Acho que muitas vezes essa aproximação, desde que feita com o devido respeito, se mostra bastante salutar, e acredito que ela pode realmente contribuir para diminuir as distâncias e aumentar a comunicação entre os mundos. Mas por qual motivo exatamente só interessa a festa, a alegria, a diversão, a transcendência? Por qual razão também não se pensa em apoiar a dor? As feridas? As necessidades?
Meu ponto é a discrepância de atenção e envolvimento entre a celebração festiva e a contemplação do cotidiano; entre uma defesa veemente ao ‘direito’ de tomar parte naquilo que é belo, chamativo, transcendente dentro das culturas indígenas, e a seletiva e provavelmente racional escolha – vergonhosa escolha! – de deixar de defender os povos originários dos ataques atrozes que eles sofrem todos os dias. Todos os dias!
Esse texto é sobre uma multidão de pessoas que se diz tão amante das culturas indígenas, que volta e meia compartilha mensagens de ‘paz e bem’ supostamente inspiradas na sabedoria ancestral dos povos originários, mas se mantém silente sobre as feridas, as dores e a morte que nos cerca e ameaça todos os dias. Todos os dias!
O paradoxo é esse. E sei que se eu fizesse uma busca nas redes sociais, eu veria que neste mesmo sábado em que uma comunidade passou um dia inteiro de terror e medo, aconteceram um sem número de ‘rituais xamânicos’ em um sem número de cidades espalhadas pelo país e pelo mundo todo, ao qual acorreram uma quantidade enorme de pessoas em busca da iluminação, da sabedoria, da ancestralidade, de se conectar, de transcender, de evoluir, de crescer… de tantas coisas…
E enquanto esses espíritos se elevavam pelo Poder do cipó, uma comunidade certamente teve dificuldade de se entregar ao sono, devido ao medo de que algum novo ataque viesse na calada da noite e os pegasse desprevenidos.
Estão errados os que frequentam os rituais? A princípio, não. Agora, se a pergunta é sobre o quão errados estão em não se dar conta de uma totalidade que é muito maior e muito mais séria do que a festa e a transcendência, minha resposta é sim. Terrível e hediondamente errados!
Até porque não existe Sagrado só nesse ambiente festivo e performático dos rituais urbanos. (Eles próprios, arremedos eivados de incompletude quando comparados àquilo que seria efetivamente um ritual vivido entre os parentes.
Sim, lamento decepcionar-vos, mas quem só participou até hoje de rituais urbanos, se algum dia tiver a graça de realmente ir a um numa aldeia quedará surpreso de notar que, até então, o que ele viu e viveu foi qualquer coisa como as sombras da caverna de Platão…).
Há sagrado e transcendente em acompanhar as palavras de líderes como a grande Nhandecy Damiana, da Tekohá Apika’y. Essa sacralidade está nela. Em toda ela. Naquilo que ela é, na luta que ela trava há tantas décadas…
Há algo de desesperadamente sagrado em ouvir Valdelice Veron contar sobre seu pai, e mais ainda em visitar o túmulo do grande guerreiro, e sentir a força que daí emana…
Há algo de imensamente sagrado nos cantos dos pajés Guarani, na sua capacidade de ver uma Terra Sem Males, onde não há mais morte, nem privação, nem dor, nem soja, nem gado, nem fazendeiros, pistoleiros ou ruralistas.
E há a imensidão da Sacralidade dos silêncios cheios de significados que permeiam o jeito de ser Guarani – o silêncio é o som dos sons.
E esses são nada mais do que uns poucos exemplos apressados, colhidos de um todo infinitamente maior. E belo, sim. Muito! E bom de se conhecer sim. Inegavelmente! E, justo por isso, de algo que precisa continuar a existir.
E é por isso mesmo que existe algo de terrivelmente errado na insensibilidade de uma parte, dentro de um corpo vivo que é sensível aos estímulos. E, a propósito, isso é um exemplo muito premente de algo que se faz presente em linhas gerais dentro da percepção indígena sobre a sociabilidade: a de que um povo é a representação de um mesmo corpo, o qual, sendo partilhado, divide em conjunto as dores e prazeres, e que por isso mesmo deve ser cuidado por todos, protegido por todos, defendidos por todos.
Daí a grande responsabilidade em saber-se nascido indígena, em saber-se participe de uma mesma essência. Como já disse em outra ocasião, nós, sobreviventes desse massacre sem tréguas, carregamos conosco mundos inteiros, e por isso, cada dia de vida é um dia de luta, de afirmação, e de memória.
Um corpo que não sente os traumas que são infligidos a uma de suas partes, corre o risco de ver-se mutilado. E esse risco se torna mais presente, conforme a extensão dessa insensibilidade é maior. Gostaria de encontrar para esses casos de insensibilidade algum tipo de tratamento… alguma acupuntura que pudesse, à base de micro-choques, tornar sensível o tecido necrosado, fazer voltar ali o sangue, o movimento, a sensibilidade.
Porque é preciso sentir! É preciso sentir quando dói, quando sangra. É preciso sentir a dor, o choque, a pancada. É preciso que as estruturas nervosas conduzam ao cérebro a informação, e que ele entenda, e dê uma resposta à sensação. É preciso que haja reação: que seja dor, que seja grito, que seja choro, que seja raiva… que seja… qualquer que seja!
ANOTE AÍ:
Raial Orotu Puri – Indígena do povo Puri. Graduada em Direito. Doutoranda em Antropologia. Chefe de Divisão no IPHAN/Acre. Assessora jurídica da Federação Indígena do Povo Huni Kui do Acre (FEPHAC). Puri – Segundo o indigenista acreano Jairo Lima, o nome Puri é uma designação de cunho pejorativo, que teria sido atribuído pelos vizinhos, não necessariamente amigáveis, os coroados o significado da palavra seria algo como ‘gentinha, gente miúda, povo fraco’. Apesar desses significados depreciativos, Puri acabou sendo o nome assumido como etnônimo, sem grandes recalques daí derivados. (Minha avó costumava dizer que era ‘pura intriga da oposição’…)
Nota da autora: * Às pessoas interessadas em ter maiores informações sobre os números da violência contra os Povos Indígenas, o CIMI os publica todos os anos.