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Sobre muros de concreto e “muros tangíveis”

Indígena – Sobre muros de concreto e “muros tangíveis”

A vida da gente é cheia de lembranças, e quanto mais velhos ficamos, mais lembranças temos. Entre estas lembranças temos aquelas que nos são muito queridas e outras que são extremamente marcantes. Claro que as lembranças familiares sempre ocupam o topo destas memórias.

Quanto as demais temos aquelas que nos deixam marcas profundas e outras que nos levam às lágrimas. Para mim, entre estas, a mais marcante de todas foi a queda do muro de Berlin. Queda esta que assisti como testemunha ocular, mesmo morando a milhares de quilômetros de distancia, facilmente suplantados pela televisiva da época.

Para quem teve uma infância permeada por filmes e notícias que mostravam em todos os níveis de bizarrices possíveis os meandros da tal “guerra fria” que ainda assombrava a existência do planeta, a queda deste muro, simbolizou muita coisa, pois indicava um novo alvorecer no mundo. Até hoje, quando vejo imagens da época sinto uma indescritível emoção.

Recentemente o assunto “muro” voltou aos holofotes mundiais, ocupando espaços em todos os tipos de mídias, em vista da decisão do alaranjado presidente norte americano, que decidiu erguer um paredão para “proteger” os interesses nacionais de seu país. Isso vem gerando muito papo, muita revolta e outros sentimentos diversos contra esse infame projeto.

Jairo fevereiro 8

Interessante que esta iniciativa nada tem de inédito em nossa contemporaneidade, pois no oriente médio, Israel construiu um tapume idêntico, onde, sob os holofotes dos dramas humanos, ocorrem as mais diversas tragédias sociais.

Estes são os muros concretos que criam outros muros, invisíveis aos olhos, mas totalmente reais e sensíveis à . Estes muros invisíveis existem aos milhares, em todos os países e aglomerados humanos. Temos muros por toda parte. Aqui no temos um muro igual, que apesar de não ser tangível, consegue separar tão bem, ou melhor até, que o muro que o biltre alaranjado pretende construir.

Trata-se do muro que separa os povos indígenas da chamada “sociedade brasileira”, separando-os e negando-lhes o pleno gozo dos Direitos que, de direito lhes são garantidos mas que, de fato, são inalcançáveis em grande parte, localizados “do outro lado do paredão”.

A questão indígena e seus dramas parece que ocorrem em outro país, irracional e desumano, capaz das mais atrozes atitudes para garantir o status quo e a manutenção social de uma pequena elite “racial” ávida de prazeres e riquezas.

Este muro é tão perfeito em sua essência que até as chamadas “politicas raciais” (como se todos não fossemos da mesma raça) deixam de fora os povos indígenas, pois nas campanhas nacionais de combate ao preconceito e ao racismo esquecem-se do índio. É como se este “não existisse” de fato, ou fosse um estrangeiro que insiste em invadir nosso país, tirando-nos os direitos e os espaços que nos pertencem.

As cenas de autoridades policiais retirando os Guarani de pequenos espaços de terra ocupadas parecem não tocar o coração desta sociedade, que se revolta ao ver um animal sendo abandonado pelo dono, ou que vai às lágrimas quando suas celebridades fazem algum gesto caridoso ou “humano”.

Recentemente observei uma grande revolta devido a um levantamento sobre alguns bilionários que detêm mais recursos financeiros que bilhões de humanos juntos.

Observei postagens revoltadas com isso, além de matérias em jornais e blogs, como se estes mesmos revoltados não contribuíssem para a manutenção da destes nababos, comprando e consumindo vorazmente seus produtos.

Na mesma semana desta polêmica que correu o mundo sem nenhum obstáculo, o “muro” evitou que grande parte da população tupiniquim, entendesse ou tomasse ciência do movimento ilegal e anticonstitucional que restringiria ainda mais o direito de posse da terra para os povos indígenas, que ainda lutam por um naco deste chão, ocupado por plantas transgênicas ou animais cheios de hormônios e destinados à morte.

Jairo fevereiro 9

Este mesmo muro impede que algumas vozes se levantem em defesa dos povos indígenas num onde, de maneira geral, luta-se por cargos e poderes como coisas indispensáveis para a sobrevivência de uns poucos abastados.

A chamada “pauta indígena” não faz parte do vocabulário de nenhum destes representantes do povo brasileiro, pois esta pauta pouco ou quase nada contribuiria para a manutenção politica destes representantes que, em grande parte, são donos ou amigos dos donos de grandes propriedades onde os indígenas lutam por nacos de terra.

Temos cotas para mulheres, negros/pardos, portadores de necessidades físicas em concursos e pleitos diversos, mas para indígenas são raras estas iniciativas que lhes garantam um espaço específico. Pergunto: porque não temos cotas para candidatos indígenas? – Creio que não temos, pois o “muro” impede que esta demanda seja considerada digna de discussão e reconhecimento. Isso sem falar das chamadas “políticas sociais”

Li e assisti estupefato sobre as chacinas nos presídios e nas ruas das cidades em diversas partes do Brasil, e como isso se tornou ponto de pauta em todos os âmbitos de discussões nas mídias, onde comentaristas dos mais diversos apontavam falhas e mostravam caminhos para a solução deste imbróglio. No entanto, assisto há anos o genocídio físico e cultural contra os povos indígenas brasileiros sem que nenhuma sensibilidade seja afetada “do outro lado do muro” e torne-se, também, um assunto digno de ser levado às casas de todos, através dos diversos aparelhos de comunicação e das mídias (que decidem o que é relevante ser mostrado e repisado várias vezes).

Fala-se em segurança e politicas de combate ao tráfico e demais violências nas cidades e seus respectivos espaços, o que pode acarretar perigos e que somente são devidamente assistidos quando estes perigos rondam os muros de uns poucos que detêm as rédeas do poder, e que rapidamente dispensam esforços dos mais variados tipos e com participação dos mais variados níveis sociais e institucionais para combater estes perigos e “acabar com o problema na raiz”.

Jairo fevereiro 11

Infelizmente, o “muro” impede que esta mesma preocupação se estenda às terras indígenas, constantemente assaltadas e assoladas por madeireiros, garimpeiros, grileiros, caçadores, etc. Sendo sua segurança confiada somente a alguns poucos profissionais de instituições totalmente desprovidas de recursos para garantir esta segurança.

Eu poderia escrever muitos parágrafos descrevendo exemplos onde temos sempre um muro invisível aos olhos da sociedade, mas totalmente tangíveis às comunidades indígenas que ficam relegadas, em grande parte, à sorte dos humores políticos e sociais do “povo que mora do outro lado do muro”, ou seja, de nossa sociedade envolvente (e sufocante) e de nossos representantes.

Acho muita pequenez a preocupação com os caminhos e humores do bonachão laranja em sua jornada mequetrefe, enquanto vivemos aqui na Pindorama em constante de negação para com a nossa jornada e com o que ocorre ao nosso redor. Como, por exemplo, a decisão do mesmo de revogar os acordos climáticos, enquanto no Brasil nossos políticos querem cada vez mais afrouxar as leis ambientais para propiciar menos obstáculos para o “desenvolvimento”.

O país parece estar em convulsão, como se fosse algo que somente agora está ocorrendo. Não! Nada disso. O que está ocorrendo no momento é algo bem mais simples de entendimento: o que estamos vendo, somente, é a construção de um novo muro, que está nos colocando, enquanto sociedade de níveis médio e baixa, “do outro lado”, afastados por uma barreira que nos silencia e como nos eleva à categoria exótica de “estrangeiros sociais”.

Nisso tem-se a ironia filosófica que dá um tempero todo especial a este drama social que grande parte da população brasileira está vivendo: os povos indígenas vivenciam isso desde que tiveram o primeiro contato.

Temos que transpor este muro. Melhor, temos que destruí-lo pedra por pedra, assim como fisicamente e psicologicamente foi destruído o de Berlin. É preciso sair da pequenez e dessa cultura pobre, onde não se pode reclamar e, devido a isso, morre-se devagar seguindo uma vida que parece normal, mas que está estritamente seguindo à risca um manual, onde, como bem diz a letra de uma canção*, ‘sua vontade nada mais é que um comercial e onde suas preocupações nada mais são do que as mostradas na programação’.

Este muro impede a muitos de ver a beleza que há não só “do outro lado”, mas também ao redor. É um muro perigoso e de difícil demolição, pois está totalmente inserido na mente e na do ser, impedindo que apreciar o colorido e a riqueza pluricultural que rodeia este país tão belo e tão grande.

Enquanto persistir em manter este muro viveremos num estado de “monocor” existencial, rodeado de paredes invisíveis que nos prendem aos ódios cordiais do dia-a-dia, e à passividade social e política.

É preciso abraçar a simplicidade e a vivacidade da existência material e espiritual, à moda dos nossos antepassados e das culturas tradicionais – como as indígenas – que nos alertam constantemente para abrirmos os “olhos da alma” e da mente. Temos que romper com esta visão liquida da sociedade que, à cada dia, afasta-se em seus egoísmos e particularidades, perdendo o sentido social de existir, que é a coletividade.

No fundo, no âmago do ser todos nós somos “indígenas”, pois, um dia nossos antepassados vestiram-se de peles, usaram penas e cantaram para os espíritos da e das águas, ouviram as vozes do céu e sonharam com a aldeia dos antepassados. Onde e em que momento perdemos esta lembrança?

Passando uma overview em tudo que rolou neste mês, e no significado mesmo, sou obrigado a concordar que este Ianuarius**, definitivamente nada mais é que uma extensão de dezembro de 2016. No entanto, olhando pra frente, assim como o muro berlinense caiu, os demais cairão, assim como seus idealizadores.

ANOTE AÍ:

Jairo Xapuri 4

 

Jairo Lima é escritor acreano. Seus escritos são publicados semanalmente no site cronicasindigenistas.blogspot.com.br

Todas as imagens são do artista Fabio de Oliveira Parnaíba, mais conhecido como Cranio, é um dos nomes mais importantes do grafite brasileiro, especialmente por trabalhar com elementos típicos da nossa cultura brasileira.

 

*Música Horário Nobre – Rodox

Ianuarius**  – Nome em latim para Janeiro, décimo-primeiro mês do calendário de Numa Pompílio, o qual era uma homenagem a Jano, deus do começo na mitologia romana, que tinha duas faces, uma olhando para trás, o passado e outra olhando para a frente, o futuro.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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