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Tempo da Cultura x Tempo da Loucura no trato do Sagrado Indígena

da x Tempo da Loucura no trato do Sagrado Indígena

Já faz um tempo que escrevi um texto sobre não-índios que assumem uma identidade indígena por interesses pessoais, mas este assunto não se esgotou, nem poderia,  afinal é um tema que dá muito pano pra manga. Retomo, portanto, essa reflexão…

Cada vez mais observo situações preocupantes que, em vez de reforçar o “Tempo da Cultura” para os , como diz o e txai Terri Aquino, parece nos remeter cada vez mais para um “Tempo da Loucura”, que enredam esses povos em polêmicas e falsas notícias. Afinal, o que tem de gente procurando se dar bem utilizando os conhecimentos tradicionais ou se fazendo passar por indígena é algo assustador, e vem crescendo cada vez mais, trazendo riscos não só para a imagem desses povos como, também, para os incautos que caem na malha fanfarrona desses sacripantas.

A coisa tá ficando de um jeito que, em muitos casos, não se pode confiar na “primeira impressão”, quando se é apresentado a alguém, sendo necessário, em algumas situações, fazer uma busca para saber se realmente alguns são o que dizem ser. Essa busca é muito facilitada pelas redes sociais, apesar de que, por vezes, pode suscitar mais dúvidas do que certeza, se não souber “filtrar” as informações que se conseguem. Retomo isso mais adiante.

Muitos espertinhos notaram que as chamadas “Medicinas Sagradas dos povos indígenas da Amazônia” permitem criar certa aura de sabedoria ancestral, concedendo o manto de “xamã” ou “pajé” aos que entendem minimamente como manuseá-las.

O uso de medicinas como a ayahuasca, o kambô, a sananga e o rapé vem se espalhando de um jeito que a profusão de gente oferecendo seus serviços e acesso a esses produtos é impressionante. Acontece que grande parte, na verdade a maioria deles, são charlatões ou atravessadores que buscam tão somente ganhos materiais ou prazeres mundanos.Jairo Charlatanismo 5

 

 

 

Incrivelmente, até comunidades – que chamam de “aldeias” em alguns casos –  vêm sendo criadas, Brasil afora, por falsários que se intitulam “guardiões” de ensinamentos que, segundo eles, aprenderam ou receberam de “mestres pajés” no Acre, no Amazonas ou nas comunidades peruanas pós fronteira com o Brasil.

Acho isso horrendo e, como alguém que comunga dessas medicinas já há mais de vinte anos, diretamente na “fonte”, observo preocupado toda essa presepada e me impressiono com a quantidade de gente que se envolve e se deixa explorar por estes falsários ou se insere nessas comunidades.

Esses pseudo-curadores (ou pseudo-pajé, ou pseudo-alguma coisa) apresentam-se como sábios entendedores daquilo que estão a vender e muitos até se travestem de indígenas, pois, ao contrário das regiões em que estão dando o sangue e a vida pela luta fundiária – e onde ser índio é por um alvo nas costas – em alguns nichos sociais, ser indígena é algo “pop”, principalmente junto ao que chamarei aqui de “circuito xamânico”, e as medicinas sagradas amazônicas vem servindo perfeitamente como máscara para esses caras.

Ou seja, poucos querem ser ativistas sociais ou políticos, mas pajé, tem aos montes. E não estou me referindo só aos yurá (não-índios), pois, infelizmente, nessa presepada toda tem indígenas também. Não sei se esse triste fenômeno vem ocorrendo em relação a outras culturas indígenas pelo Brasil, possivelmente até estejam, mas acredito que não sejam tão copiadas (sim, copiadas) do que as amazônicas.

Esses dias, trocando ideias com alguns amigos, tanto virtualmente quanto presentemente, estávamos refletindo justamente isso, sobre algumas dessas figuras que se dizem indígenas, com penacho e penduricalhos diversos, posando para fotos, apresentando seus serviços e produtos e, também, de alguns indígenas que escolheram o “mau caminho”, e se utilizam dos conhecimentos do seu , ou de outros, para proveito próprio, sem dar retorno às suas comunidades.

Isso vem chamando a atenção das lideranças e de outros representantes das comunidades, que veem sua riqueza cultural sendo mercantilizada sem o devido cuidado, ou respeito aos direitos coletivos, ou, até mesmo, vem manchando o nome de seu povo.

Jairo Charlatanismo 3

 

 

Já é preocupante ver jovens indígenas viajando dentro e fora do Brasil, realizando rituais sem ter muito conhecimento sobre os mesmos, mas ver pessoas oferecendo medicinas indígenas ou promovendo rituais e vivências xamânicas com estas medicinas é pavoroso.

Certamente que, para boa parte dos que se metem com estes falsários e adquirem estes produtos ou participam de seus rituais, não tem ideia da ciência e do cuidado que é o preparo destas medicinas, assim como suas diferentes utilizações e especificações.

E assim, acabam por se fazerem de bobos, adquirindo ou pagando para participar desses rituais com estes ditos pajés/xamãs, sem se dar conta que podem estar se sujando na lama cármica, desequilibrando o espírito ou, o que é pior, consumindo um veneno. Pois, para tudo na vida há de se ter prudência, como bem alertou o pensador Baltazar Grácian, em sua obra “A da Prudência”, e, no que diz respeito ao mundo místico e às medicinas sagradas, esse é um fundamento básico.

Por exemplo, existem diferentes tipos de feitura para o “cipó indígena” (ayahuasca), bem como os tipos de canções e rituais de acordo com cada tipo de feitio. Não se trata só de jogar na panela uns pedaços de jagube e um tanto de chacrona e fazer um cozido. Nada disso.

A coisa é muito mais complexa e, para seu domínio e segurança do preparo é preciso anos de estudo e dedicação com os mais velhos e experientes. E quando vejo imagens, como as que me enviaram recentemente, de um sujeito (que se diz indígena de um povo que nem é amazônico ou detentor destas práticas)
oferecendo cipó e rapé, e convidando para seus rituais, fico enojado e revoltado: Que raios os yuxin estão fazendo, que simplesmente não fulminam um ser destes? – Pensei, mesmo sabendo que cada um traça o caminho que deseja, e que não cabe aos espíritos sagrados tirá-lo à fórceps do mesmo.

Os perigos, para a material e espiritual, que produtos ou falsas medicinas podem acarretar aos que as utilizam é coisa séria. Uma sananga falsa, preparada de maneira irresponsável ou utilizando a planta errada pode acarretar cegueira ao usuário, assim como a ingestão de beberagens que dizem ser cipó ayahuasca podem transformar a busca pela “luz” em uma experiência perigosa. Isso sem falar do uso indiscriminado do kambô.

Soube que a mais nova piração é misturar as medicinas, rituais e demais práticas indígenas com outras. Fiquei pasmo em saber que existem pessoas que misturam ayahuasca com outras medicinas e produtos de outras culturas, em determinados rituais que, na minha opinião, estão mais para “missa negra” do que para algo que eleve-os às paragens sagradas.

Fazer isso é errado, além de ser uma falta de respeito para com os espíritos guardiões que guiam e cuidam deste(s) conhecimento(s) sagrado(s). Fica o conselho: não façam ou participem de algo assim, as consequências, para a harmonia espiritual, são funestas.

É preciso cuidado. É preciso seriedade. É preciso prudência.

Jairo Charlatanismo 4Existe muita gente boa, verdadeiros mensageiros de luz e de conhecimento através dos conhecimentos indígenas, sejam de suas medicinas, sejam de suas histórias e princípios de vida. Mas também tem outros tantos que, no fim das contas, só querem se dar bem. É o já conhecido homo homini lupus*.

O bom observador notará que os tempos atuais andam bem loucos, escuros e confusos e, nesse cenário apocalíptico, é comum a aparição de falsos profetas, gurus e guardiões, que facilmente arrebatam ovelhas que mansamente pastam em seus campos e que lhes rende muitos dividendos. O uso das medicinas em si, sem o devido suporte do princípio sagrado, moral ou terapêutico que as guie, bem como da idoneidade e desprendimento material de quem as aplica, nada mais são que drogas ou placebos.

É preciso entender que oficinas não fazem alguém um xamã, mesmo que o certificado que receberam diga isso – sério, tem doido pra tudo, eu mesmo vi as imagens da formatura dos “xamãs”. Esse povo precisa entender que a coisa é mais séria do que imaginam e que o que estão fazendo é uma mangofa indevida com o que não entendem.

A “bolha” que se criou nos últimos anos de uso irresponsável de conhecimentos
sagrados dos indígenas está para estourar. Fissuras aqui e ali já são facilmente percebidas, mostrando que seu ponto de ruptura não tarda.

Um exemplo é que estão começando a se tornar comum as denúncias via redes sociais, de exageros, maledicências e presepadas de muitos falsos xamãs e demais charlatões. Denúncias terríveis que pouparei dos detalhes, no momento, os olhos e mentes daquele que leem este texto. Mas digo que, algumas destas situações fazem o adágio da porralouquice “sexo, drogas e rock and roll” parecer brincadeira do jardim de infância. Infelizmente, essas situações só contribuem negativamente para os povos indígenas.

Creio que é preciso pôr ao sol estes farsantes, denunciar mesmo cada presepada que fizerem, assim como, também, é preciso valorizar os que agem seriamente e contribuem positivamente para o engrandecimento e divulgação dos Povos Originários que muito tem a ensinar a todos nós. Fico feliz e agradeço a todos os espíritos sagrados da floresta que me conduziram para esta trilha de conhecimento com esses povos, que me receberam e até hoje me ensinam e me recebem em suas casas como um parente.

A é bem mais que só utilizar seus produtos, suas medicinas ou comungar de seus rituais. Estes povos têm filosofias de vida maravilhosas, percepções de mundo profundas e um senso de pertencimento coletivo e humano que muito faz falta nesta nossa sociedade, cada vez mais maniqueísta e individualista.

É preciso abraçar a sua causa e se envolver, buscando o todo e não somente sorver, tal qual uma criatura sedenta, de parte desta cultura. É preciso romper com essa dependência de se ter um “guru” e de buscar cegamente a iluminação através de certas pessoas que, a um olhar mais atento, não passam de crianças brincando com fogo.

Jairo Charlatanismo 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ANOTE AÍ:

Jairo Xapuri 1

 

 

Jairo Lima, escritor e indigenista acreano, parceiro da Xapuri, escreve e publica seus textos semanalmente no blog: www.cronicasindigenistas.blogspot.com.br. 

* Homem lobo do homem.

Todas as imagens desta matéria foram selecionadas por Jairo Lima e são da pintora Alice Haibara, que produz lindas imagens a partir da pintura com terra. Para saber mais deste interessante acessar o seu site: https://arteterracor.wordpress.com/

Respostas de 2

  1. O que diz das lojas online que vendem as medicinas? E dizem q são preparadas por povos indígenas, isso é possível? Algum pode ter algum crédito?

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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