Sobre abutres, livros e asas
A literatura nos permite compreender o momento histórico em que vivemos e como isso ressoa com outros períodos da história humana. É disso que trata este “Sobre abutres, livros e asas”
Por Rejane Araujo
O momento atual causa-nos estranheza e horror. Procuramos metáforas que deem conta de expressar as mazelas e contradições do tempo presente. Nesse sentido, a literatura nos permite compreender o momento histórico em que vivemos e como isso ressoa com outros períodos da história humana. Nero, sem nenhum pudor ou dilema moral, colocou fogo em Roma. Aqui, como política de Estado, presenciamos o extermínio de nações indígenas, a escravidão de povos africanos e mais recentemente a tortura nos porões da ditadura.
Em busca de entendimento sobre a barbárie a que estamos submetidos e da falta de políticas públicas diante da pandemia, que se afigura como projeto político, releio José J. Veiga. A imaginação e a realidade fantástica se misturam nas mãos do escritor goiano para criar um retrato sufocante de um período sombrio da história brasileira. No livro “A Sombra dos Reis Barbudos” (1972), o homem desprovido de liberdade vai se emaranhando num mundo aterrorizante.
Imerso nesse terror, damo-nos conta de que mudam os métodos de opressão, mas a barbárie continua. Como antídoto à cegueira e aos muros das prisões, a leitura nos dá asas.
O sol explode no tórax
abutres gravitam em sua órbita
devoram olhos, ouvidos e línguas.
Sugam o ar do peito
as carnes minguadas.
O silêncio
arma engatilhada.
Riem nos telhados das igrejas
defecam em nossas cabeças
posam pra foto.
De asas abertas
ganhamos amplitude
alçamos voo.