Sobre as caçadas do povo Saterê-Mawé
Entre as recomendas aditivas às caçadas, existe uma que é comumente partilhada entre indígenas do Baixo Amazonas. Particularmente, os Sateré-Mawé entendem que não se deve caçar após o nascimento de um(a) filho(a) por causa da perseguição de uma das monstruosidades da mata. Caso contrário, além de não matarem nada, os nativos que procuram alvos podem enlouquecer por causa dos efeitos do odor da tapirayawara (anta-onça-cachorro).
Por Renan Albuquerque/amazoniareal
Ela é uma monstruosidade sagrada (entre demais existentes) que ataca e destroça infiéis ou desrespeitadores dos resguardos por sua aparência nefasta e de seu vínculo às divindades. Dessa maneira, se um humano caçar no período de resguardo do nascimento do filho algo intenso se apossará do seu corpo, como uma circunstância febril, produzida por uma descarga oriunda da presa abatida, tal e qual nesse ato se operasse uma vingança entre gentes e bichos.
Como exemplo, a panema e a mofina são dois componentes gerais e bastante popularizados da ontologia de caçadores da Amazônia. São estados confirmados por encontros pragmáticos, em um mundo particular, que a experiência dessas comunidades nativas confirma.
A alimentação é, assim, estruturante até mesmo para a criação de necessidades ou regras de parentesco, que posteriormente são isoladas em quadros cosmológicos mais amplos, e essa estruturação abarca míticas e simbologias. A comida, da qual o parentesco também deriva, ela mesma é a consequência de predações, de canibalismos, mas também de comensalidades, porque assim sendo são marcadas as contingências da existência.
Reginaldo Batista, da etnia Sateré-Mawé, discorre sobre a divisão ou classificação das partes de um animal caçado, como partes indignas, partes dignas ou partes apropriadas para a alimentação corporal de um caçador. Ou seja, se um caçador de determinado clã encontrar em seu caminho um animal morto por uma onça e se suas partes estiverem destroçadas é melhor que ele não as consuma porque atrairia desgraça ou atos de vingança contra sua casa e sua família.
Alguém ou algum animal poderia invadir sua morada e atacar sua mulher ou filhos. Um bicho escolheria a ele ou a sua família para alimentar-se em retaliação pela morte de outro animal menor.
De tal maneira, ao caçador é aconselhável que não coma partes consideradas podres ou não puras ou de menor valor do animal abatido, tais como vísceras ou órgãos encharcados de fel. A prescrição se direciona à manutenção do físico com vigor e da alma sem enxertos mortuários e, por isso, pútridos em função do apodrecimento.
O caçador deve comer os talhos da musculatura do bicho matado, para que traga ao seu corpo a velocidade, a precisão e a força do animal quando vivo. Isso acarreta, conforme Philipe Descola, a seguinte consequência lógica: se os animais veem a si mesmos enquanto pessoas empenhadas em atividades socioculturais, então não é possível negar-lhes a humanidade que pretendem encarnar.
Mas e se a humanidade não representasse exatamente algo bom ou desejável? Se a humanidade fosse um rebaixamento? Há que se considerar a humanidade como decaimento do ser, libertando-se do crivo da pessoalidade e da pretensa primazia homo sapiens, que em verdade só retira funções do outro, do não-humano.
Ao contrário do dualismo pós-moderno, que desdobra uma multiplicidade de diferenças sobre o fundo de uma natureza imutável, o pensamento selvagem (para usar um termo mais à ordem lévi-straussiana) encara o cosmos inteiro como animado por um mesmo regime instituidor de vontades conscientes.
Essa orientação é diversificada não tanto por naturezas heterogêneas, mas por fundar modos diferentes de se apreender uns aos outros. Modos que atribuem pensamentos cognoscíveis, dentro de uma economia da inteligibilidade múltipla, geradora de conhecimentos universais sob diferentes ordenamentos.
Também é importante projetarmos pensamentos sobre o fato de a natureza e a cultura não despontarem como unicidades adversárias. E provavelmente nem como unicidades. Elas são interligadas, como localismos globais existentes em bichos e gentes. E ainda. Não são conceitos díspares e concorrentes. Parecem mais categorias fundamentais de episteme e localização de gêneros globais agregadores, principiados sob aspectos transigentes.
Acreditamos que existe uma razão prática que move o ato alimentar entre o caçador e a caça – como denominamos de humano-animal (devir animal) –, como também há uma consciência coletiva que agrupa a caça e o caçador como parte de um todo.
O uno, desta feita, e assim o concebemos, é a corporificação de uma atividade que envolve procedimentos rituais que regulam de uma ponta a outra todo o ato alimentar dos tempos pré-conquista e que hoje são reincorporados a processos de enchimento de barriga com boas comidas (diferente dos atos de esvaziamento, próprios de comidas condimentadas e/ou industrializadas).
A razão prática que desloca o ato alimentar entre o caçador e a caça perpassa por uma construção de mundo originária das primitividades dos povos da América. Essa razão engloba uma articulação estrutural entre a predação e a comensalidade. É um contraponto ao falseamento ocidentalista imposto desde a invasão da pirataria do Velho Mundo, que renomeou a economia da alimentação e criou uma cimeira entre as coisas da Terra e as coisas das humanidades.
A instalação desse contraponto, em algumas populações amazônicas, iniciou exatamente após as invasões portuguesa, espanhola, holandesa e inglesa no Brasil. Na Amazônia, demorou mais a acontecer, porém teve significativo avanço após o nascimento de crianças no século XIX, havendo momentos em que o comer se tornava o foco das restrições e não mais o momento em que se diferenciavam interditos e precauções cotidianas.
Foram períodos em que os processos de transformação estiveram em pleno curso (e continuam na atualidade), marcados pelo resguardo da força armamentista europeia. O nascimento, como apontamos, foi um bom exemplo disso; assim como o parto, em si, foi a exteriorização de um processo interno de transformação, que costuma remontar à captura de um princípio vital externo. A fabricação-transformação da criança em boa guerreira ou boa comedora de caça não se interrompeu de todo, contudo, com o nascimento.
O período pós-natal passou a ser crucial para a definição do “tipo” do bebê. É quando pai, mãe e suas parentelas diretas concentram esforços para fabricá-lo como pessoa humana consciente de seu papel dentro do corpus da etnia. Assim, o físico e a psiquê do recém-nascido, no processo de sua criação – para o bem das ancestralidades –, ainda corre o risco de ser “feito” igual ao corpo de outros tipos de pessoas ou simplesmente de animais.
Eis por que as mulheres Parakanã, por exemplo, passam horas e horas a massagear o bebê. São essas operações que tornam os corpos humanos diferentes, mas nem tanto, dos corpos dos animais, os quais, com exceção dos bichos de estimação, não são jamais modelados.
As ações sobre o corpo servem, assim, para fixar uma forma e um destino para as crianças: “Aplicações ocasionais de jenipapo”, escreve Cecilia McCallum (1) sobre os Kaxinawá, “parecem ‘fixar’ a forma fabricada pelo trabalho intenso dos parentes tanto durante quanto após a gravidez; ao mesmo tempo, o jenipapo torna o bebê invisível aos espíritos” (2001, p. 21).
O tornar-se invisível aos espíritos, assim sendo, remete-nos novamente ao problema da captura da alma como princípio vital na caçada. É comum, no bioma Amazônia, conceber-se que o princípio vital do bebê não está seguramente ligado ao corpo e que, por isso, pode ser capturado a qualquer tempo.
O bebê, como ainda não foi inteiramente fabricado como membro de sua comunidade, pode ser feito parente de outra gente, de outros animais ou outros inimigos. No momento da couvade, deve-se, portanto, fechar as portas à interação com o exterior, com a natureza, algo que se evidencia, entre outras coisas, pela interdição ao pai de participar de caças, de guerras, de rituais e atividades xamânicas. O risco aqui não diz respeito apenas à criança, pois o pai também está em transformação e pode tornar-se outro ser, animalesco.
Segundo Egon Schaden (2), os Guarani Ñandeva denominam de odjepotá essa ameaça que paira sobre o genitor. Os Sateré-Mawé, por sua vez, entendem esse mal do pai, que pode ser repassado à criança, como atino contra a vida familiar.
Sem uma conotação específica, mas com implicações dentro da parentela direta dos clãs. Essa tipologia de armação mostra que feitiçarias inteiriças se embrenham não apenas em corpos de pessoas, mas se instalam e são repassadas por germinação, em sêmen, para a geração posterior, sendo o pai o predecessor dos males.
ALIMENTAÇÃO
O que dizer da mesa tribal do passado, a qual é hoje, em alguma medida, associada às redes do comércio mundial de alimentos? Na perspectiva lévi-straussiana o alimento estaria dividido em três estados principais: o cru, o cozido e o podre.
Em relação à culinária, o cru constitui o polo não marcado, enquanto os dois outros o são fortemente, mas em direção oposta. O cozido como o estado de transformação cultural do cru e o podre como sua transformação natural pós-morte. Desse modo, é registrada uma dupla oposição subjacente ao triângulo principal, entre elaborado versus não elaborado, de um lado; e natureza versus cultura de outro (3).
O antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), portanto, observou que, tomadas em si mesmas, as categorias tornam-se formas vazias e que nada esclarecem em termos da culinária nativa amazônica determinada. E também. Sobre os engendramentos cosmológicos associados à lógica do ato de comer dizem pouco.
Nesse sentido é que o presente tópico almejou caminhar, ensaiando entendimentos sobre o percurso etnográfico visibilizado entre os Sateré-Mawé, o qual tornou plausível inferências sobre o significado cultural das três categorias.
Primeiro, sobre o cru, podemos destacar que os próprios insígnios cósmicos integrados e associados à lógica do ato de comer perpassam pela “modernização” das indianidades, dentro de uma ideia de modernização que aniquila as relações mútuas entre caça e caçador.
Uma aniquilação que agrega e desestimula toda a sorte de beberagens e alucinógenos, de comidas venenosas, malignas, de alimentos bons para se pensar, de incursões de tóxicos (como o timbó) para a matança e a coleta de peixes e também de saberes que ajudaram na domesticação, por exemplo, da mandioca e das comidas afrodisíacas etc.
São saberes, em suma, que podem funcionar como uma sorte ou como uma morte, como um nascimento ou como um apagamento (ou melhor, um não entrecruzamento), abordando a reafirmação dos atos primordiais ou negando-os substancialmente.
Portanto, a comida crua, e não obstante viva ou morta, já traz consigo uma revelação, ao menos na prática da caçada, relacionada ao decaimento das tradições integrativas ao par matador-vítima.
A dialética ancestral da procura pelo melhor e mais rápido jeito de aniquilar a caça fundamentou historicamente um comportamento apropriado e formador de espíritos coletivos, de mutualidade.
Era, como se pode afirmar, um fundamento ancorado em redes sociais de matanças em caçadas. Tais redes, buscavam a menor dificuldade para capturarem alimentos na mata e os devorarem. Captura, no caso, remete-nos à difícil tarefa de enredar bichos e matá-los.
Essas redes foram sendo atrofiadas, todavia, em razão dos recentes sistemas de obtenção de comida em ambientes aldeados, que ajudaram na manutenção alimentar, sim, porém desnudaram uma vertente perigosa de se pensar: a da cordialidade, quase que cordata, na preparação das comidas.
E quando destacamos a ideia de “preparação”, tudo nela acrescentamos para a formação da conjuntura abordada. Desde o afiamento de facões, pontas de lança, foices entalhadas, do tensionamento de arcos e da coleta de timbó; da preparação do físico e do mental para os pernoites na floresta; do agitamento do corpo para suportar o estresse e a fadiga; das rezas que acompanham os guerreiros e os salvam da perdição e da loucura na floresta; dos rapés inalados, das seivas sugadas e das bebidas tomadas para que os caçadores se mantenham de pé e atentos na procura pelas presas.
A preparação a tudo envolve, até mesmo a identificação dos animais pelo pitiú do suor ou do sangue desprendido durante a arte da disputa pela vida e a morte.
Os étnicos do Baixo Amazonas consideram como de gosto pitiú alimentos que exalam timbre olfativo similar ao salgado e gorduroso suor dos bichos, ao sangue menstrual e às entranhas em apodrecimento de caças ou peixes, principalmente.
Pitiú é uma palavra utilizada para designar, primeiramente, cheiros fortes e desagradáveis (mas que indicam pistas) como, por exemplo, o cheiro de sangue impregnado nas mãos (no corpo) após limpar ou comer bichos recém abatidos. Nessa categorização existem variações como as que classificam, por exemplo, que os botos, exalam esse mesmo odor, porém com um formato odorífero doce “que nem ananás”. Entre homens e mulheres Munduruku é comum a narrativa de que botos, por sua vez, são atraídos rumo a fêmeas pelo cheiro do sangue menstrual.
O que se mostra como aparente, acerca da lógica do ato de comer, é que o cultivo de simbolismos próprios à alimentação se dá no estado natural da comida: o estado cru. As divindades que integram as devorações de outrem estão presentes e se fazem sentir na primazia; as míticas que adornam a historicidade das comidas igualmente se fazem perceber nessa temporalidade; são os espíritos concernentes aos alimentos que aparecem e moldam a mesa, ou ao menos boa parte dela, reforçando as tradições das caçadas.
É no cru que os atos de matança e morte são executados, por encenação ou veracidade. Veracidade dentro dos tópicos das perseguições na mata e encenação no caso das brincadeiras Sateré-Mawé distribuídas durante a dança do mäe-mäe, que acontece em janeiro e fevereiro.
A dança do mäe-mäe é uma festividade de plantio-ritual realizada da segunda quinzena de janeiro ao início de fevereiro, no Andirá Marau (divisa Amazonas-Pará), em agradecimento tanto à produção que se avizinha no ano quanto ao colhido nos últimos 12 meses para consumo e negociação.
Mäe-mäe é um ritual preliminar e mesmo indutor do waimat, envolvente de crianças de todas as etapas da infância e de todos os clãs componentes Sateré-Mawé, com mais ou menos participantes distribuídos segundo cada clã.
A disposição, em geral, se dá em terreiros, dentro de espaços aldeados ou mesmo em ocupações indígenas urbanas, as quais são muito comuns na Amazônia, fora de metrópoles como Belém/PA, Manaus/AM e Porto Velho/RO, para citar apenas algumas do bioma.
COZIMENTO
Concernente ao cozido, trata-se de um estado mediano da natureza dos alimentos, um estado próprio para a ingestão da comida. O que antes era penoso e difícil de se engolir cru, pois se gastava muita energia na mastigação, considerando o tempo para triturar, agora, depois de ser levado ao fogo, tornou-se melhor ao consumo.
Após a descoberta e a conceituação do cozimento, o domínio dos fazeres e saberes acerca da natureza das comidas moldou o cotidiano e deixou mais tempo livre para atividades outras, que não as caçadas e as devorações, acelerando a melhoria proteica para a humanidade.
O cozido, portanto, é o termo que tende a nos remeter a um “ótimo” ponto de ingestão, um grau de preparação satisfatório à maioria dos alimentos consumidos à mesa. O cozimento conceitua, ao paladar, um tanto de melhoramento essencial, como se fosse o ápice do adensamento ao fator primordial encontrado na comida, o valor gustativo.
Um valor, sublinhe-se ainda, não somente subjetivo no contexto do grau de cozimento, mas em ampla medida objetivo e universalista no tocante ao volume de víveres que são levados ao fogo antes da ingestão.
Cozer alimentos engendra uma função formativa específica para o fogo dentro do âmbito da vida familiar e coletiva como um todo. Não queremos dizer o fogo em si mesmo, mas a ação de preparar e arrumar comidas e levá-las ao fogo por um determinado tempo.
É, por assim compreender, um ato conjuntural que funciona muito mais enquanto meio e não como um fim. O cozimento como uma prática revolucionária – e aquilo que está inserido antes dele, durante ele e após a ele – é a etapa que talvez mais agregue diversidades de perspectivas. Porque tanto transforma o estado da comida para a ingestão quanto proporciona o ajuntamento de pessoas em torno da mesa.
No tocante ao guaraná dos Sateré-Mawé, o cozimento dele se dá no termo da preparação para o ritual do waimat, tradicionalmente, e no empacotamento para o comércio no mercado exterior, no viés contingente do agora. Duas funções diferenciadas, distantes, que poderiam dialogar em alguma medida, mas com dificuldades, dado que nem sempre são estabelecidas de modo associado, interlocutivo.
No particular, podem mesmo estar dissociadas e repelirem-se, pois uma não depende da outra. Cozer o guaraná, em interpretação simbólica, é atualizar a presença dele como repasto para a etnia, como alimentação visível, eleita e condicionada pela indianidade – que passa a saber-se como senhora do guaraná, detentora do limiar da planta e conhecedora intrínseca dos mistérios da espécie.
O cozimento descredencia um possível estado de delírio de negação, em que a etnia tenderia a recusar a verdade sobre o guaraná, uma verdade conhecida e cultivada pelos indígenas historicamente, mas ora vilipendiada.
A comida, em estado cozido, realiza o gozo do paladar e do corpo ao qual serve. É a interpretação gustativa da domesticação do guaraná, uma domesticação da natureza, diga-se por insistência, que tem origem em um tempo muito mais remoto do que o tempo do presente, em que se beneficia a planta para a comercialização junto a empresa Guayapi Tropical.
Assim sendo, a natureza, ou seja, o âmbar originário da vida, diz Lacan (1964), “fornece significantes que estruturam e modelam a organização inaugural das relações humanas. O jogo operatório do significante inclui o ser, e age de maneira pré-subjetiva” (pp. 25-26).
No contexto étnico dos Sateré-Mawé, a psicanálise lacaniana parece funcionar de maneira a fornecer a ideia de que, o cozimento do guaraná – instrumentalizado em sua torragem –, enquanto materialidade orgânica e imaterialidade simbólica, tem o poder de, integralmente, constituir a funcionalidade étnica desses povos originários e a constelação de conhecimentos no Andirá-Marau.
Modificar a natureza do guaraná, partindo-se do ato de cozer, poderia, entretanto, significar o encerramento da força da transformação da natureza em cultura?
Cozer é adensar transformações que possibilitam a apresentação da comida em sentido ritual, ou melhor, cerimonial, dentro de espaços familiares. E, após energizado o corpo em razão do alimento comido, dentro de uma esfera de ingestão psicofísica e nutricional de víveres, procede-se à formação de consciência sobre a mesa.
No corpo, a comida passa então a mover-se internamente, com toda a sua densidade proteica, bem como em sua forma coletiva representacional e imagética, reforçada simbolicamente em procedimentos esperados pela ingestão do alimento em nível ritual (já observado).
O alimento torna-se, assim, substância mítica que agrupa, reúne e reavive, por significação e sentido, laços que possibilitam a existência de um determinado agrupamento originário, no caso os Sateré-Mawé.
Um apêndice ao exposto se faz necessário, porém. É enfático afirmar, dentro desse ponto de reflexão, que o povo do Andirá-Marau prepara alimentos, os coze, em sentido vário.
E um desses sentidos faz referência às modernas relações de jugo do Leviatã estatal – daquele monstro institucional que delega a iniciativas privadas, escusas, a proficiência das coisas da vida e da morte na Amazônia. Esse monstro ordena a dinâmica inerente das legislações e delega a correlação das coisas materiais que cercam a existência.
Em suma, e por hora, acerca do cozimento alimentar, esse ato amplia o significado da comida ao ponto em que a caçada não se mostra mais apenas como ação única que trará caça às bocas da etnia, da tribo, do agrupamento étnico.
A caçada passa a ser um primeiro estabelecimento de contato físico e moral com o bicho que servirá de pasto às gentes. Levado ao fogo, o alimento muda de status e de significado, sendo reposicionado no contexto da vida em sociedade.
Referências
Nota 1: MCCALLUM, Cecilia. Morte e pessoa entre os Kaxinawá. Mana [online]. 1996, vol.2, n.2 [cited 2017-07-27], pp.49-84.
Nota 2: SCHADEN, Egon. 1974 Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo, EPU/Edusp.
Nota 3: Atualmente, houve uma multiplicação de restaurantes na Europa que estimulam o hábito de consumir determinados alimentos em sua forma crua, alargando a categoria “cru”. A delimitação geral circunscreve-se a um campo semântico visto de fora – e cada categoria deve ser vista de um certo modo. Tampouco, porém, nos cabe apontar, existe cru em estado puro. O que há são determinados alimentos que só podem ser ingeridos em estado cru.
Renan Albuquerque é professor e pesquisador do colegiado de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e desenvolve estudos relacionados a conflitos e impactos socioambientais entre índios Waimiri-Atroari, Sateré-Mawé, Hixkaryana, junto a atingidos pela barragem de Balbina e com assentados da reforma agrária.
Fonte: http://amazoniareal.com.br/sobre-as-cacadas-satere-mawe