Comunidades de fundo e fecho de pasto: antes de tudo, umas fortes!
“As pessoas do sertão são, antes de tudo, umas fortes.”
Conheça um pouco da história e da luta das comunidades de fundo e fecho e pasto.
Por Adriana Margutti, Valdivino Rodrigues
Este nosso artigo é sobre as autodenominadas comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, importante segmento das Comunidades e Povos Tradicionais do Brasil. Queremos, aqui, colocar um pequeno feixe de luz sobre a difícil situação em que vivem essas comunidades que tanto contribuem para a conservação da nossa biodiversidade e que padecem sob a ameaça de perder seus territórios tradicionais.
Neste nosso Brasil de dimensões continentais predominam, desde o período colonial, as grandes propriedades de terra sob domínio de quem possui poder econômico e político. Cada vez mais, esse modelo injusto de concentração fundiária coloca em risco a sobrevivência das Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, sobretudo pela ameaça da tomada se seus territórios.
Recentemente, os grandes empreendimentos agropecuários, de mineração e eólicos, amparados no poder político e na pressão econômica, vêm tentando segmentar as comunidades e subtrair dos povos tradicionais, os verdadeiros donos da terra, o direito à posse e ao domínio legítimo e legal de seus territórios.
A Articulação Estadual de Fundo e Fecho de Pasto é o movimento social que os representa e luta para garantir seus direitos fundamentais.
COMUNIDADES DE FUNDO E FECHO DE PASTO
As comunidades de Fundo e Fecho de Pasto estão presentes nos processos de ocupação do interior da Bahia, mais especificamente nas áreas de Cerrado e Caatinga, desde o tempo das Sesmarias. Ali construíram, ao longo do tempo, sua identidade territorial e seu modo de vida condizente com a realidade dos territórios que ocupam.
Sua característica produtiva é o uso coletivo da terra, sem cercas, para a caprinocultura e para o extrativismo de produtos florestais não madeireiros, como o umbu e o licuri. A prática da caprinocultura se dá em sistema extensivo ou semiextensivo, com os animais soltos nas áreas de pastagens naturais e coletivas, ao longo de todo o ano.
Apresentam fortes vínculos de parentesco, possuem forte religiosidade e tradição cultural, e fazem uso da medicina preventiva tradicional. As populações de Fundo e Fecho de Pasto guardam a força, a coragem, as tradições do povo sertanejo, “antes de tudo um forte”, em um mundo social onde a solidariedade permeia todas as relações humanas.
Suas práticas produtivas são realizadas com equilíbrio ambiental, a forma como se relacionam com a terra e com a mata pode servir como exemplo de produção conservacionista em contraponto à exploração da terra intensiva e de larga escala que predomina no país e nos territórios onde se localizam.
LUTA HISTÓRICA
A luta das Comunidades Fundo e Fecho de Pasto não começou ontem, essa luta vem de longe com avanços e conquistas, retrocessos e retomadas.
De acordo com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) da Bahia, a certificação das comunidades de Fundo e Fecho de Pasto se encontra no seguinte estágio: 967 comunidades têm registro na Secretaria, em três situações: 611 certificadas; 165 estão na Casa Civil aguardando a publicação do despacho de reconhecimento; 191 processos estão em tramitação.
O que possibilita avanços na busca desses direitos continua sendo a capacidade de articulação, mobilização, resistência e pressão das próprias comunidades, em sua busca cotidiana por políticas públicas que atendam suas especificidades socioculturais e produtivas, promovendo o conjunto das práticas e saberes coletivos. O quadro a seguir resume a trajetória de luta dessa gente que resiste na terra, que não desiste nunca do que é direito seu.
Ano |
Histórico/Parecer/Situação Jurídica |
1984 | Como resultado da mobilização social, o governo da Bahia inicia o reconhecimento e a regularização fundiária dos territórios coletivos. Nesse ano, a Constituição do Estado da Bahia, no Capítulo – Da Política Agrícola, Fundiária e da Reforma Agrária, Parágrafo único, do Art. 178, reconhece as comunidades de Fundo e Fecho de Pasto e seu direito à ocupação dos territórios, porém mediante Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU). |
2006 | O crescente processo de organização social resulta na regularização fundiária de 107 áreas coletivas; ainda nesse ano o segmento alcança maior visibilidade e ocupa um assento no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). |
2007 | A Regularização Fundiária dos territórios tradicionais deixa de fazer parte da agenda do Estado da Bahia. |
2013 | Lei 12.910 da Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA) impõe prazo de até 31 de dezembro de 2018 para a autoidentificação, solicitação de certificação, reconhecimento e regularização fundiária dos territórios das Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto junto aos órgãos competentes no Estado e na União. Contra essa lei que determina prazo para o autorreconhecimento foi encaminhada ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que está tramitando sob a relatoria da Ministra Rosa Weber. Como o prazo foi contestado pela Articulação Estadual de Fundo e Fecho de Pasto, a Casa Civil do Governo da Bahia, por entendimento com as lideranças da Articulação Estadual, continua acatando solicitações após o prazo. |
2017 | Ápice da fragilidade. A Procuradoria Geral do Estado (PGE) emite parecer recomendando não emissão dos títulos de domínio para os territórios coletivos de Fundos e Fechos de Pasto, ainda que no mesmo processo a PGE recomende o CCDRU com validade de 20 anos para essas comunidades. |
Os instrumentos de garantia dos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, como os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, que tratam da proteção das culturas tradicionais; a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que lhes assegura direitos fundamentais como o autorreconhecimento, a garantia do território, a consulta prévia e a informação quando ações a serem desenvolvidas por terceiros afete suas condições de manutenção e reprodução cultural; e a Constituição Baiana, não têm alcançado a efetividade necessária.
Não podemos negar a importância das ações que vêm sendo realizadas pelo estado da Bahia, por exemplo o Bahia Produtiva e o Pró-Semiárido, executados pela CDA, mas é necessário que as falhas da Lei nº 12.910 sejam corrigidas e o reconhecimento ao direito territorial seja uma “Política de Estado” e a regularização fundiária das áreas coletivas se dê por instrumentos legais reconhecidos pelo Estado em todas as suas instâncias.
Os Povos de Fundo e Fecho de Pasto, com seu modo de viver e produzir, geram ganhos intangíveis para a sociedade, contribuem para a manutenção da biodiversidade da Caatinga (bioma exclusivamente brasileiro) e do Cerrado (a savana mais biodiversa do planeta), além de contribuir no combate às mudanças climáticas, garantindo diretamente a segurança alimentar e a qualidade de vida de milhares de pessoas, no campo e na cidade.
Adriana Margutti – Mestre em ciências florestais, faz parte do Coletivo Florestal Cagaita. Valdivino Rodrigues – Representante da Articulação Estadual de Fundo e Fecho de Pasto.
Nota: Conheça mais sobre os povos de Fundo e Fecho de Pasto: https://redecerrado.org.br/comunidades_cerrado/fundo-e-fecho-de-pastos/; https://www.youtube.com/watch?v=lmeeArmg_8;