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Sofrer racismo: dor ancestral que une, recrudesce e fortalece

Sofrer : dor ancestral que une, recrudesce e fortalece

O escritor fala sobre o racismo, preconceito e o direito do povo preto de ser livre, de contar suas histórias, de andar pela rua, de vender seus produtos, de reunir e fortalecer seu povo

Sofrer racismo provoca uma dor ancestral que nos une, recrudesce e fortalece

Guilherme Soares Dias 

Ninguém está preparado para sofrer racismo. Essa foi a sensação que tive depois de ser monitorado pela polícia por três horas ao fazer um tour chamado Caminhada São Paulo Negra pelo centro da capital paulista. O passeio é vendido pela minha empresa, a Black Bird Viagem. Realizamos ele há dois anos. Contamos as histórias do período da escravização, mas falamos também das coisas importantes que as pessoas negras realizaram.

A polícia recebeu um ofício dizendo que seria uma manifestação. Afinal, um evento com o nome Caminhada São Paulo Negra só podia ser um protesto, não é mesmo? Até é. Mas é um passeio turístico como tantos outros. Há um preconceito (racismo) comum em achar que tudo que envolve pessoas negras é protesto, “baderna”, é de graça. A Black Bird Viagem é uma empresa e como diz Cintia Ramos, sócia da Diaspora. Black, parceira nossa de trabalho, queremos sim mudar o mundo, mas queremos também ganhar dinheiro.

Fomos coagidos e constrangidos enquanto trabalhávamos. Eu fiquei nervoso e veio a sensação de que estava errado. Não estava. Conduzia 12 pessoas, de máscara, num passeio vendido por uma empresa com CNPJ. Tudo regular. Quando a notícia viralizou questionaram se “estava tudo certo” com o passeio. Sim, temos todos os documentos. Mas os policiais em nenhum momento questionaram sobre isso e nem deram bola quando tentamos falar sobre. Também não quiseram chegar mais perto e ouvir nossas narrativas. Captaram, no entanto, que falávamos a história das pessoas pretas. E, como disse o policial que nos abordou no fim, tentaram entender o que reivindicávamos.

Nós reivindicamos o direito de ser livre, de contar nossas histórias, de andar pela rua, de vender nossos produtos, de reunir nosso povo. Nunca vi um walking tour liderado por brancos e que contam a ‘história tradicional' ter esse tipo de abordagem. Eles perceberam que não era um protesto, mas mesmo assim nos acompanharam e filmaram durante três horas. Tentei o tempo todo me controlar. Ensaiei algumas vezes conversar com os policiais, mas fui impedido por Heitor Salatiel, meu companheiro da caminhada e de vida. Ele, mais pacificador, dizia “vamos terminar o tour e depois falamos com eles”. Afinal, estávamos com clientes.

Ao fim do tour, fomos abordados de novo. Não assinei os documentos que queriam e fomos amparados pelos participantes da caminhada. Cheguei em casa bem mal. A vontade era de chorar. A sensação de impotência. Ao invés de chorar, vomitei um texto e comecei a espalhar. Fiz boletim de ocorrência e passei a procurar uma advogada preta que pudesse me auxiliar. As pessoas brancas que consultei minimizaram a situação e disseram que não daria em nada e que poderia se reverter a nós. Elas entendiam que era uma situação de racismo, mas até aí isso já estava dado. Mas, pera, como assim “só racismo”? Esse é o crime contra o nosso povo, comum, que nos provoca dor ancestral desde tempos remotos. E que eu não descobri ontem. É contra ele que luto diariamente, mas nunca imaginei ser cerceado dessa forma. Muitas pessoas pretas mandaram mensagens de solidariedade. Entenderam e lamentaram termos passado por isso. Alguns disseram ficarem feliz por não ter havido física, mas teve psicológica e ela ainda lateja na minha cabeça.

Quase mil pessoas já fizeram a caminhada. Muita gente conhece o trabalho sério que a gente vem fazendo nesses dois anos. Nossa rede de apoio é grande. Buscamos orientações jurídicas para questionar e quem sabe processar o estado. Também pedimos cartas manifestos de entidades parceiras de apoio ao nosso projeto e questionamento a essa atitude. Se deixarmos esse tipo de coação vai virar comum e não queremos ter problemas com a polícia porque realizamos nosso trabalho de contar as histórias da população negra.

Algumas pessoas disseram que o fato vai dar a visibilidade que a caminhada merece. De verdade, não queria ser conhecido por essa dor. Mas, sim, por valorizar as histórias negras. Nesses dois anos, já estivemos na Bienal de Arquitetura, na Jornada do Patrimônio, fizemos passeios corporativos para grandes empresas, estivemos na programação do Sesc e recebemos pessoas negras de outros países com frequência. Nosso contar história vem de longe e tem caminhada assim como as heranças do nosso povo.

O fato é que esse projeto me alimenta. Eu estava como criança no sábado (24) pela volta do tour após sete meses parado por conta da pandemia. Um misto de ansiedade e felicidade. Foi frustrante perceber que travei e não usufrui o passeio como deveria por conta da polícia. Peço desculpas a quem participou por isso. Entendi que de fato vivemos a história na pele. As pessoas brancas e negras que nos acompanhavam puderam vivenciar parte das histórias que contávamos ali no ato.

O que é ser um corpo negro no mundo? Pergunta que sempre faço nos meus programas de entrevista e sempre me devolvem. Desejo mesmo nunca mais passar por isso e que nenhuma pessoa negra não tenha que lidar também. Enquanto isso não acontecer, continuarei lutando para que seja realidade. A Caminhada São Paulo Negra resiste. Eu não ando só. Sigo mais perto das pessoas negras, porque sei que são elas que me alimentam e defendem (nós por nós), recrudescido pelo golpe, mas firme no propósito de contar nossas histórias, valorizar a negra, difundir o afroturismo e lutar contra o racismo. No fim, só queremos ser gente preta curtindo a vida (hashtag criada por nossa parceira de projetos Brafrika). E como bem diz o slogan da Black Bird, se viajar pode ser transformador, porque não pode ser também inclusivo?

Fonte: Alma Preta

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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