SONHOS AMORDAÇADOS: UMA HISTÓRIA REAL

SONHOS AMORDAÇADOS: UMA HISTÓRIA REAL

SONHOS AMORDAÇADOS: UMA HISTÓRIA REAL

Era 24 de dezembro de 1971. Estava em minha casa, triste, absorta em meus pensamentos, quando meu cunhado, o radialista e publicitário Iberê Monteiro, dono da Rádio Riviera [de Goiânia] na época, hoje Rádio Terra, entrou e pediu pra eu ligar o rádio às 18 horas, que ele tinha uma surpresa para mim

Por Tânia Maria Corrêa Camárcio

Emocionada, ouvi, de autoria dele e na voz dele, uma comovente crônica, “Solidão na Chuva”, que me fez chorar e, ao mesmo tempo, serviu de consolo e amparo a um momento triste e de fragilidade nas nossas vidas!

Há um choro coletivo da natureza. 

Faz quatro dias que a natureza chora chuva. 

E no quarto dia é Natal.

Faz também quatro dias que eu falei em Carolina. Carolina, menina pobre, menina sem braço e sem boneca, irmã humana de Lara, minha filha. Carolina, irmãos, continua sem braço e sem boneca. 

Mas Carolina ainda vive bem perto de você, bem perto de mim, bem perto de cada um, em cada esquina de rua ou avenida, daqui, dali, dacolá.

Há um choro coletivo da natureza.

Faz quatro dias que a natureza chora chuva.

E no quarto dia é Natal.

Faz também quatro anos que Maria Cheia de Graça dava à luz Carolina, menina pobre, sem braço e sem boneca.

Mas Carolina, filha de Maria Cheia de Graça, só existe porque existe uma prisão, irmãos. Uma prisão onde há um homem preso. Só, triste e preso.

Se do lado de lá há um homem preso, do lado da cá, há uma mulher só, triste e solta. Entre um homem preso e uma mulher solta há um longo corredor, mais comprido e triste do que o corredor do hospital onde nasceu Lara. Mais comprido, mais sujo e mais triste também.

É um corredor de prisão, que separa o homem da mulher. Esse corredor, irmãos, bem pode ser um corredor onde passa a minha, a sua, a nossa tristeza. 

É um corredor russo, com certeza. Ou um corredor chinês, quem sabe? Um corredor no Paquistão. Ou um corredor nos Estados Unidos, desunidos por todos nós, católicos, protestantes e espíritas que rezamos pela revolução do amor, na terra do desamor.

Se há hoje um choro coletivo da natureza, há hoje também um choro individualizado da mulher solta. A mulher chora, irmãos, o homem preso. E eu choro, irmãos, a mulher que chora o homem preso. É uma mulher pequena e tímida. Há uma mulher que entende das coisas, e chora. Mulher que começa a entender das coisas no mundo dos homens acaba chorando. Chora a mulher, no coletivo choro da natureza, que chora há quatro dias.

O homem preso é um homem que roubou. O homem preso é um homem que matou. O homem preso é um homem que nem roubou, nem matou, mas está preso. É o homem que está preso porque resolveu melhorar a vida de outro homem. Escuta aqui, homem que nem roubou, nem matou: Eu também sou um homem. Sou marido de Linda e pai da Lara. Estou solto e penso em você, homem que está preso.

Eu sei que tem um escritor que chegou a escrever que daria um bilhão de libras esterlinas por um resto de luz na vida escura da prisão vazia. Mas não liga não, homem que está preso. Em penso em você. E sua mulher, homem que está preso, também pensa em você. 

Enquanto o mundo cristão-anão põe o vinho no copo, a comida na mesa e esquece você, homem que está preso, eu não esqueço não.

O desencontro de agora vai ao encontro marcado no dia de amanhã, na vida de cada um. E vai chegar o dia, homem que está preso, que você vai estar solto na memória de cada um, em cada Natal, na casa de todos. Haverá um dia, homem que está preso, que você só será preso pelo amor de sua mulher solta. E não liga não, tem muita gente hoje que está solta na vida e presa no desespero.

No desespero de não saber que o dia nasce a cada dia, a esperança nasce a cada hora, a felicidade nasce de cada minuto, e o amor se renova no segundo de cada nascimento. Não importa não, irmão que está preso. A chuva não dura muito. A natureza não vai chorar [para] sempre o seu choro coletivo.

Já faz quatro dias que chove, irmão. Importa não: a chuva que chove só faz esconder o sol quente de verão que vem aí. Um sol forte e quente que vem queimar a vida da gente.

Chora não, mulher que tem o homem preso. Chora não, mulher da China, chinesa é. Chora não, mulher da Rússia, russa é. Chora não, mulher do Tio Sam, americana é. Chora não, mulher goiana, Tânia é. 

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Chora não, gente, o sol quente de verão vem vindo. Não chora, Maria, minha mãe. Não chora, Maria, bonita, cheia de graça. Não chora, Maria, mãe minha: meu pai não está preso na terra. Meu pai, Maria minha, cheia de graça, está preso no céu.

Pai nosso, que estás no céu, cuida da mulher solta que tem o homem preso. Cuida, pai, o homem nem roubou, o homem nem matou, o homem, pai, que nem roubou, nem matou, está preso porque resolveu melhorar a vida de outro homem. Cuida, pai nosso que estás no céu, da Maria, bonita, cheia de graça, mãe nossa de cada dia, e cuida também, pai nosso que estás no céu, da mulher solta que chora o choro só de saudade.

Eu sei que é um choro pra dentro, diferente desse choro coletivo da natureza que chora há quatro dias. É um choro mais chorado. Um choro de mulher que entende das coisas no mundo dos homens. Um choro de mulher intuitiva, que sabe das coisas e vê o mundo novo vindo aí, no lombo de cada ano, nas pernas de cada dia, nos pés de cada minuto, no cheiro de cada segundo.”

462588910 10221055596979096 6930762071709490961 nTânia Maria Corrêa Camárcio – Escritora goiana, excertos do livro Sonhos Amordaçados, uma história real. Editora Kelps, 2014.

 

 

 

 

 

 

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p style=”text-align: justify;”>Nota da Redação – Recebi, neste começo calorento de dezembro, o livro, autografado, da amiga e companheira Tânia Camárcio. Li de uma sentada só, sem parar de chorar chorando. Porque Tânia nos conta, por sua própria história e em sua escrita arguta e terna, as dores e delícias de uma juventude que foi à luta por este Brasil democrático que, apesar dos pesares, nos dá o direito, conquistado pela bravura de jovens como Valdi e Tânia, de pelo menos sonhar com um viver “Sem Medo de Ser Feliz”. Zezé Weiss – Editora. 

Uma resposta

  1. Muito grata a Revista Xapuri na pessoa da Jornalista Zezé Weiss pela excelente resenha a respeito do meu livro: “Sonhos Amordaçados” e pela deferência em publicá-lo e pelas palavras tão gratificantes , que nos emocionaram muito. Muita gratidão e que nossos sonhos jamais voltem a ser tolhidos! Nossas Saudações Democráticas!

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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