Travessia nos Terreiros dos Parentes Puyanawa

Travessia nos Terreiros dos Parentes Puyanawa: Rumo ao universo da curandeira

Por Dedê Maia –

Mais uma vez eu me encontrava entre os parentes da floresta. O sentimento era o de sempre. Sentia-me realmente entre parentes dessa grande família florestana, e naquele momento específico, muito grata a organização do evento pelo convite, e de ter possibilitado a minha presença nesse importante evento, realizado na aldeia sagrada dos Puyanawa, nossos anfitriões.

Essa aldeia foi construída em 2008, para a revitalização cultural desse povo. Um lugar que por si só já faz você se sentir acolhido e emocionado pela generosidade da mãe natureza, rodeando a aldeia zelada com muito cuidado pelas famílias Puyanawa, com sua floresta de muitas jóias e igarapés de águas cristalinas.

Além disso, essa aldeia me emociona ainda, e sempre que a visito, por ser uma referência da luta e renascimento de um dos povos mais massacrados, em todos os sentidos, durante seus primeiros contatos com os não indígenas.

A partir das duas últimas décadas do século 19, suas terras foram violentamente invadidas por grupos de caucheiros, seringueiros e seringalistas, e muitas “sementes” importantes da sua cultura, como sua , foram quase totalmente extintas. No entanto, como verdadeiros guerreiros da floresta, liderados por Luiz Puwe, Vari Puyanawa e Joel Puyanawa, sobrinho e filhos do grande cacique Mario Puyanawa, e um grande líder na luta pela reconquista desse território, buscaram na de alguns poucos antigos, que guardavam em segredo algumas de suas sementes preciosas, e começaram o árduo trabalho do “replantio”.Puyanawa Rodrigo Marciente 2

Uma dessas guardiãs é Dona Railda Puyanawa, que tive o prazer de reencontrar durante essa travessia, transbordando amor, e vê algumas de suas sementes compartilhadas, como a língua Puyanawa, que havia sido considerada extinta, renascendo, reflorindo nos cantos que ecoavam no grande terreiro da aldeia sagrada dos Puyanawa.

E a minha emoção se expandia entre outras famílias indígenas que estavam participando também do evento. Famílias de diferentes rostos, diferentes línguas, diferentes saberes, diferentes histórias, com antigas ciências, de jovens trazendo “cultura nova” nas relembrações de suas tradições ancestrais, também me emocionaram muito com o carinho e atenção que dispensam a minha pessoa. Como é bom se sentir querida! Carinho verdadeiro, de gente verdadeira! Creio que essa é a referência mais real da avaliação que às vezes faço da minha caminhada, há quase 40 anos, entre esses parentes da floresta.

Mas, tinha algo de novo nesse reencontro com os parentes. Além da presença de alguns não indígenas, de diferentes nacionalidades, convidados pela organização do evento, representantes de Universidades, e outras Instituições estaduais, federais e internacionais, jornalistas, cineastas; Além da minha expectativa de ouvi-los sobre suas posições de guardiões ancestrais da ciência Ayahuasqueira Indígena, tema central da Conferência, bebida sagrada, hoje utilizada, estudada e pesquisada por não indígenas do mundo inteiro; Um sentimento de profunda gratidão acompanhava-me em cada abraço e aperto de mão nesse encontro de reencontros tão especiais!

Não foi possível participar da I Conferência Indígena da Ayahuaska realizada em 2017. Encontrava-me em tratamento de um câncer. Na época lamentei muito não poder participar. Mas, fui consolada pelas vibrações positivas que essa grande família florestana me enviou, fazendo seus rezos para minha cura, e me alimentando com mensagens de esperança, como as recebidas dos meus queridos amigos, Benki Piyãko, Aro Katukina, Sabino Huni Kui, Siã Huni Kui, Ibã Huni Kui, Edina Shanenawa, e tantos outros amigos e amigas, vibrando pela minha saúde e pela oportunidade de novos reencontros acontecerem.Puyanawa Rodrigo Marciente 3

E esse reencontro aconteceu!  E aqui estou tentando com essas limitadas palavras expressar os meus sentimentos e impressões durante essa travessia nos terreiros dos parentes Puyanawa. E a palavra que encontro e que resume esses sentires é GRATIDÃO!

Durante três dias, ouvi as intensas, profundas, e às vezes calorosas conversas e trocas de impressões, entre antigos e a nova geração, sobre seus futuros passos em defesa dos seus conhecimentos ancestrais, especificamente, sobre a ciência milenar da Ayahuasca, sobre tudo seu uso, tanto pelos povos indígenas, como pelos não indígenas.

Uma das falas que mais me impressionou, entre tantas outras falas importantes, foi a de Txana Mashã Huni Kui, representante da Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá.  Afirmou ele num tom reflexivo e convicto do seu yumakim (recado pra longe):

“Apesar do mundo ocidental, do mundo não indígena ter nos massacrado, violentado e assassinado nossas crianças, nossas mulheres, avós, bisavós, e os parentes que restaram foram por esse mundo mantidos em cativeiros como escravos… Nós não queremos vingança! Colocamos nossa ciência ancestral (Ayahuasca) a disposição desse mundo para a sua cura, especialmente a cura espiritual…”.

Foi com essa generosidade incondicional que durante as três noites, após o dia inteiro de muito trabalho, buscando caminhos de alinhamentos entre os conhecimentos científicos indígenas e não indígenas, que nossos Txais e Shanus nos proporcionaram ainda, o privilégio de participar dos rituais de cura, realizados no grande terreiro da aldeia, de areia branquinha, iluminado por um manto de estrelas, que mais pareciam bordados no céu de lua nova, e que nos abrigava amorosamente.

Puyanawa Rodrigo Marciente 4

Meu último trabalho de cura com a Ayahuasca, e desta vez fazendo a travessia nos terreiros do povo do Japó, entre os parentes , me conduziu aos “rios” do meu interior, mostrando-me términos de ciclos… Necessidade do vazio para novos começos… Redesenhar novos caminhos.

No terreiro da aldeia sagrada dos Puyanawa, na última noite da Conferência, já em de despedida, ouvindo os Huni Meka (cantos do cipó), que se revezava em vários ritmos, e em diferentes línguas fui levada ao universo dos donos da Ayahuasca curandeira.

Entre a minha admiração pela beleza imensurável de tão grandioso universo, e a minha atenção aos comandos dos yuxibus presentes, que me guiavam nessa travessia; Atravessando árduos, e em alguns momentos dolorosos caminhos, eu pude sentir uma profunda tristeza enterrada bem no fundo meu coração, que durante anos eu tentava fugir desses sentimentos difíceis.

E nas profundezas das minhas feridas eu encontrei finalmente uma luz brilhante que me convidava a seguir. Uma voz suave, mas firme e determinante me conduzia dizendo: não tenha medo… Esse é o processo do renascimento da do seu filho aprisionada pelas mazelas do mundo quando ele ainda era adolescente…

Seu amor maternal, sua coragem de enfrentar esses árduos caminhos, sua reverência e respeito ao universo da Ayahuasca curandeira propiciarão a você e ao seu filho a alegria desse renascer.

E já amanhecendo o dia, como uma dádiva dos céus, eu finalizei meu trabalho na alegria e com o coração em festa, conectado a outros corações que me acompanharam nessa travessia de muitos aprendizados.
A Ayahuasca cura? Sim! A Ayahuasca cura àqueles que a reverenciam e a respeitam em toda a sua dimensão de força, poder, amor e luz!
Haux! Haux! Haux!

dede fot

Dede Maia é e pesquisadora. Sua trajetória de vida mescla-se com a história do indigenismo acreano. Junto com  grandes indigenistas como os Txais Terri e Antonio Macêdo ajudou a construir o que hoje chamamos  “a história do Acre Indígena” . Mesmo desenvolvendo vários projetos diferentes em sua trajetória, sempre se destacou como incentivadora e apoiadora do processo de fortalecimento da cultura tradicional em sua expressão artística e material, sendo autora, coautora ou participante de um-sem número de projetos voltados à esta frente indigenista. de Jairo Lima. Fotos: Rodrigo Marciente, cedidas por Jairo Lima.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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