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TUÍRE KAYAPÓ FOI GUERREAR NO CÉU

TUÍRE KAYAPÓ FOI GUERREAR NO CÉU

TUÍRE KAYAPÓ FOI GUERREAR NO CÉU

Em 21 de fevereiro de 1989,  Tuíre Mebêngôkre, jovem liderança feminina do povo Kayapó, então com apenas 19 anos, fez história ao colocar, literalmente, o facão no pescoço do Estado brasileiro, durante o 1º Encontro das Nações Indígenas do Xingu, em Altamira, no Pará

Por Maria Letícia Marques e Zezé Weiss 

TUÍRE KAYAPÓ FOI GUERREAR NO CÉU
Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real

Na tensão do momento, Tuíre sentiu que, para defender sua floresta e seu povo contra a construção de Belo Monte, não bastava somente levantar a voz em protesto.  Em questão de segundos, Tuíre bradou seu grito de guerra, “Tenotã-mõ!” e encostou a lâmina de seu facão no pescoço do então diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes. 

Brava, ante um Lopes estupefato, Tuíre seguiu, então, com seu discurso cortante, em sua própria língua Jê: “Você nasceu na cidade e então veio para cá atacar nossa floresta e nossos rios. Você não vai fazer isso!” O gesto de Tuíre, absolutamente inesperado, conseguiu parar a funesta obra de Belo Monte por 22 anos. 

Em Altamira, os Kayapó exigiam o fim do projeto de construção da hidrelétrica de Kararaô, posteriormente substituído por Belo Monte. O grande chefe Raoni, também presente no encontro, fechou coro com Tuíre: “A eletricidade não vai nos dar nossa comida. Precisamos que nossos rios fluam livremente. O nosso futuro depende disso. Nós não precisamos de sua represa”, declarou na ocasião.

“BELO MONTE DE MERDA”

A foto de Tuíre com o facão no pescoço do burocrata, captada por repórteres fotográficos que acompanhavam a audiência, virou capa de jornal e revista no mundo inteiro. No Brasil, foi o ponto de largada para o despertar de uma sociedade em grande parte adormecida ante as ameaças dos grandes projetos econômicos, herdados do regime militar (1964-1985), como as hidrelétricas, para “desenvolver a Amazônia”, que colocam em risco a preservação das florestas e do modo de vida tradicional dos povos originários.

Parte dessa herança nefasta, o projeto de Belo Monte, idealizado durante a ditadura militar, teve que ser engavetado, devido à grande repercussão negativa do protesto de Tuíre, mas foi retomado durante o governo do presidente tucano, Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). 

Hostilizado entre ambientalistas e entre os povos da floresta como “um belo monte de merda”, o projeto recebeu novos estudos por parte da Eletrobras, então estatal, e das empresas Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Norberto Odebrecht, no primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT (2003-2011). 

Infelizmente, a batalha de Tuíre e de seu povo contra Belo Monte foi perdida. Em 2011, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu a licença para que a construção da usina fosse iniciada. 

Para construir Belo Monte, o governo de Dilma Roussef (2011-2016), também petista, passou por cima dos protestos e mobilizações dos povos indígenas, dos povos todos da floresta, de ambientalistas e cientistas, e de sua própria militância, que alertaram, de todas as formas possíveis, para os impactos que a barragem de Belo Monte traria para as populações locais e para o meio ambiente na Amazônia, e construiu a barragem. 

Nem FHC, nem Lula, nem Dilma jamais se desculparam pela catastrófica tragédia de Belo Monte. Tuíre, por seu lado, continuou, até o fim de seus dias, na luta para salvar a Amazônia e os povos que nela vivem da sanha asquerosa dos e das que deviam protegê-la, em vez de destruí-la. 

MESTRA DA RESISTÊNCIA

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Foto: Juliana Pesqueira/Anmiga

Em janeiro de 2020, durante o “Encontro dos Povos Mebengokrê e lideranças indígenas do Brasil”, realizado na Terra Indígena Capoto Jarina, no Mato Grosso, em entrevista concedida à Amazônia Real, Tuíre falou à repórter Juliana Arini (traduzida pela hoje também grande liderança Kayapó, O-é Paiakan), sobre o que ocorreu Altamira: “Eu só queria mostrar a ele o que é opressão. [Eu] estava lá e só ouvia aquele homem branco insistindo em uma fala para construir a hidrelétrica…”

Tivesse participado somente do Encontro de Altamira, Tuíre já teria sido gigante para o movimento indígena brasileiro, para a defesa da Amazônia e para a própria História. Mas não, Tuíre seguiu na resistência. 

No encontro de Capoto Jarina, a grande guerreira integrou a mesa de debate das mulheres indígenas e endossou a Carta das mulheres que, em um de seus trechos dizia: “Enquanto mulheres lideranças e guerreiras, geradoras e protetoras da vida, iremos nos posicionar e lutar contra as questões e as violações que afrontam nossos corpos e nossos territórios”. 

Em outra entrevista, dessa vez para a série #ElasQueLutam, do Instituto Socioambiental (ISA), Tuíre disse, esperançosa: Eu quero que essa floresta que sobrou continue em pé, para que meus netos, meus filhos consigam alimentos sem veneno, sem as coisas que derramam para plantar. Eu quero o fruto que cresce sozinho, que nós comemos e ficamos fortes, felizes e sem doença (…) As florestas, os rios e os povos indígenas: a sobrevivência deles é o que eu defendo até hoje. Eu não quero que matem a pouca terra que restou.

Integrante do povo Mebêngôkre, Tuíre nasceu em 1970, no território Kayapó, na aldeia Kokraimoro, às margens do Rio Xingu, no estado do Pará. Uma das primeiras militantes indígenas mulheres, Tuíre, até o fim de seus dias, protagonizou muitas outras manifestações em defesa da floresta, dos territórios e direitos indígenas. Em uma das suas últimas declarações públicas, ela convocou o país para lutar junto contra o Marco Temporal.

Ao jornal Brasil de Fato, declarou:

Nossa vida é a floresta, a Amazônia. Estamos sempre vivendo na floresta, no rio. Nós nos acostumamos a morar dentro da Amazônia, porque a Amazônia está lá nos guiando. Lá nós nos alimentamos bem e não tem doença, nenhuma doença. Por isso o pessoal não pode destruir nossa Amazônia, nossa floresta. Eu não quero. Porque senador vive na cidade, deputado vive na cidade. Eles não moram dentro da floresta. Nós não, nós vivemos na floresta, na Amazônia. Por isso que eu não quero o Marco Temporal, eu não quero.

TUÍRE KAYAPÓ FOI GUERREAR NO CÉU 

Tuíre Mebêngôkre, uma das maiores lideranças indígenas brasileiras de todos os tempos, faleceu longe de sua aldeia, na Terra Indígena Las Casas, no Parque Nacional do Xingu. Depois de enfrentar uma longa batalha contra um câncer de útero, Tuíre ancestralizou na manhã do dia 10 de agosto de 2024, em um hospital de Redenção, no Pará.

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Foto: Juliana Pesqueira/Anmiga

O Brasil recebeu a notícia do encantamento de Tuíre por sua sobrinha, O-e Kayapó Paiakan, que a acompanhou no tratamento: “Não queria ter [que dar] essa notícia, mas ela lutou até o fim para não deixar por vencida. Tia Tuíre, grande referência para nós mulheres. Prima do meu pai, Paulinho Paiakan. Agora estará em outro plano”. Maial, irmã de O-e, filha de Paulinho (levado pelo Covid), também se despediu nas redes sociais: “Que você encontre meu pai e todos os nossos ancestrais”.

Muitas foram as expressões públicas de tristeza pelo encantamento de Tuíre: 

“Hoje nos despedimos de uma brava guerreira Kayapó. Ancestralizou a gigante Tuíre Kayapó, que ficou amplamente conhecida por uma foto durante o Encontro das Nações Indígenas do Xingu, realizado em Altamira no ano de 1989, em que colocou um facão no pescoço do então diretor da Eletronorte.

Mas essa foto representa apenas um entre tantos momentos de sua irretocável trajetória. A guerreira Kayapó era incansável na luta pelos direitos do povo Kayapó, dos povos indígenas de todo o Brasil e na proteção do meio ambiente. Para além da fortaleza que foi Tuíre, porque a vida exigiu que fosse, é assim também que nos lembraremos dela: ecoando seu canto e seu sorriso. Que os ancestrais te recebam, Tuíre. Seguiremos aqui, honrando sua luta.”  Sônia Guajajara – ministra dos Povos Indígenas 

É com profundo pesar que recebemos a notícia do falecimento de Tuíre Kayapó, uma grande mulher e liderança indígena. Sua força e coragem deixaram uma marca na história do Brasil. Conhecida por sua defesa incansável dos direitos dos povos indígenas e pela proteção das florestas, Tuíre se tornou um símbolo de resistência e luta por justiça, sendo precursora no protagonismo das mulheres indígenas na busca por direitos.  Joenia Wapichana – presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai)

Uma grande líder nunca morre, apenas muda de lugar. Tuíre carregou a luta desde a base, porque a luta é o quarto poder. Todos que têm coragem de pegar o microfone e falar, Tuíre também era deputada junto conosco, deputadas eleitas pela luta, porque não somos e nem ocupamos um lugar sozinhas. Seu legado continuará a encorajar nossa voz para denunciar todas as tentativas do Congresso Nacional de nos silenciar e de roubar nossos direitos. Célia Xacriabá – Deputada Federal Indígena (PSOL – MG) 

Sua passagem para outra dimensão nos deixa um vazio imenso, mas também uma responsabilidade ainda maior de continuar sua luta. Seguiremos firmes com a força e o exemplo que você nos deixou, Tuíre.  Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) 

É com profundo pesar que recebemos a notícia da partida de Tuíre Kayapó, uma das maiores lideranças indígenas do Brasil. Tuíre foi uma guerreira incansável na defesa de seu povo e da preservação da Amazônia. Sua coragem, eternizada contra Belo Monte, inspirou e continuará a inspirar gerações na luta por justiça e respeito aos povos originários. Sua ausência deixa um vazio irreparável, mas seu legado permanecerá vivo em cada batalha travada pelos direitos indígenas e pela proteção de nossas terras!  Fundo Puxirum 

O Brasil amanhece mais covarde hoje (10/08). Morreu Tuíre Kayapó, protagonista da cena desafiadora do conflito de Belo Monte em 1989. Sua passagem acontece no momento em que os direitos indígenas são ameaçados por uma “conciliação” no STF. Que sua coragem inspire todos nós. Observatório do Clima 

zezeZezé Weiss – Jornalista, editora, e Maria Letícia Marques, redatora voluntária da Revista Xapuri. Com informações e imagens da Agência Brasil, Amazônia Real e Brasil de Fato

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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