Umbanda: Um século de Resistência

Umbanda: Bater cabeça, firmar ponto, abrir e fechar a gira ainda são expressões por vezes proibidas

Após 111 anos da fundação da Umbanda no Brasil, racismo persiste dentro da religião afro-brasileira vista por adeptos negros como um modo de resistência

Por Aline Bernardes

Maria é como as mães que levam o ditado popular “sempre cabe mais um” à sério. Sem nenhum herdeiro, cede espaço para que quarenta filhos de fé ocupem um lugar em sua vida. Familiarizada com a Umbanda, está à frente do Primado do Brasil, pequeno terreiro localizado no Belenzinho, bairro da zona Leste de cidade de , há quase duas décadas. Sua pele branca evidencia como as religiões de matriz africana não fazem distinção de cor. A babá me apresentou, além de seu terreiro, as casas Caboclo Ubirajara e Caboclo Girador, onde estão os pais-de-santo Marcelo Nascimento e Olindo Nunes. Por curiosidade me rendi. E, graças à Deus, à Oxalá, não sei ainda. Mas é certo que o encanto foi imediato.

São Paulo, 2019. O trajeto do metrô Belém até a Rua Herval mostra a diversidade de cultos. Em apenas um quilômetro é possível admirar a beleza da Igreja São José do Belém, perder-se nos incontáveis salões de diferentes vertentes evangélicas. Até chegar à Tupa Oca do Caboclo Arranca Toco. Com a Avenida Salim Farah Maluf como vizinha, os barulhos de buzinas, carros, caminhões, motos rasgando o asfalto, não silenciam as vozes dos atabaques que parecem empurrar a discreta porta de alumínio branca da entrada.

Ao empurrar o portão, dois caminhos abrem-se diante dos olhos. À direita, ervas para banhos e defumação tomam conta do ambiente e até escondem a totalidade do muro da casa. À , a porta aberta parece um convite para entrar. Cadeiras enfileiradas de frente ao congá (ou altar) separam as pessoas – mulheres de um lado, homens do outro – como nas sinagogas. Nas maçonarias, o teto imita o céu, poderia dizer o mesmo do Primado do Brasil, mas aprendi uma outra palavra que quer dizer o mesmo.

– Aruanda, é lá que está Oxalá. Rezamos para como rezamos para Oxalá.

A mãe Cida explica que quando os negros chegaram ao Brasil, além de seus corpos escravizados, tiveram sua fé negada. A prática era arriscada e lhes custava punições. A saída encontrada para evitar as represálias dos homens brancos e foi de associar os orixás a santos católicos. O babalorixá Olindo Nunes conhece bem São Sebastião, por exemplo. Sincretizado com o seu santo de cabeça, Oxóssi, habita as regiões das matas e é considerado como um guardião.

Segundo a jornalista Ana Luiza Fernandes do blog WeMystic, filhos desse orixá têm facilidade em se expressar, são amáveis e eternos jovens. Definição que entra como luva quando se conhece Olindo. Aos 74 anos, o pai-de-santo é daqueles senhores que, se você estivesse em transporte público, cederia o lugar. Não só pelas rugas que escondem suas mãos e seu rosto ou pela envergadura do seu tronco, mas por carregar o sorriso fácil de quem já é vivido. Sem muita preocupação com a gravação, começa a contar a sua na religião.

O ano era 1965 e Olindo atravessava a cidade como em uma peregrinação à procura de respostas para uma doença até então desconhecida.

– Eu só parei de procurar ajuda quando um médico virou para mim, olhou no fundo dos meus olhos e disse: “Você não tem doença nenhuma, procure outro caminho porque a medicina não vai te curar”.

– Quais eram os sintomas? – Questionei.

– Eu sentia muito nervoso, medo, cheiros que não eram normais.

No vai e vem da cidade o portão de sua casa era onde via o mundo acontecer. Foi ali, que encostado na parede, deparou-se com um senhor que passava por ele o encarando. Até que Olindo começou a incomodar-se com a situação, tomou coragem e perguntou:

– Por quê você me encara essa maneira?

– Ah menino, você tem um dom. Um dom espiritual.

O homem que se perdia nos olhos do jovem era um babalorixá, que não pestanejou em lhe fazer um convite.

– Na próxima vez que eu aqui passar, quero te levar a um lugar.

Chegou o dia. Olindo o acompanhou até uma casa, humilde, com o chão pisado de . Era um centro de Umbanda.

– Eu ainda estava me ambientando quando comecei a ouvir “pega uma roupa branca e vem para os trabalhos”.

Segundo ele, não pareceu um pedido, apesar de ter sido. As pernas bambeavam e o corpo parecia tremer como se passasse uma descarga elétrica. A boca seca era um aviso.

– Eu não estava preparado para o que iria acontecer.
– Você estava ali como consulente?
– Sim, subi ao congá e uma voz sussurrou em meu ouvido para que eu firmasse a cabeça em Jesus e fechasse os olhos.

Ali, envolvido pelo som dos atabaques e pelos pontos cantados, Olindo, em sua mente, viu alguém se aproximando.

– Estava tudo escuro, uma criança ficava cada vez mais perto.
– Era um Erê?
– Era um Erê, foi então que incorporei pela primeira vez, entrei em transe e só me recordo de quando eu acordei no braço do povo.

Incorporação é o nome dado ao processo onde um médium se comunica com um espírito trabalhador da luz. Acontece um contato entre a mente do médium e a mente do espírito.

– A gente não sente nada, não vê nada, não ouve nada. Eu tô sabendo quando eu acordo, como diz assim, quando o caboclo sobe, né?! Eu sei que estou ali porque eu comecei ali, não tô doido – diz gargalhando.

– Pai, sua história é parecida com a do Zélio – interrompo.
– Sim, minha filha.

Tal como Olindo, em 1908, Zélio Fernandino de Moraes sentia vibrações e, em determinados momentos, assumia a postura de um velho, falava manso e com sotaque diferente. Em outros, discursava a respeito dos mistérios da natureza. Aqueles que o cercavam achavam que poderia estar doente ou com uma possessão psíquica. Alguns dias se passaram e Zélio não conseguia levantar-se da cama. O diagnóstico era de uma paralisia parcial. Sem um tratamento, curou-se. E assim foi encaminhado a um centro de mesa branca, onde incorporou um espírito.

– Se é preciso que eu tenha um nome, digam que sou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, pois para mim nunca existirá caminhos fechados. Venho trazer a umbanda, uma religião que harmonizará as famílias e que há de perdurar até o final dos séculos – disse aos presentes.

Surgiu, assim, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. A história, relatada pela BBC Brasil, conta o nascimento da única religião verdadeiramente brasileira, segundo a historiadora Jaqueline Conceição.

– O , por exemplo, é original da África e chegou a América do Sul junto ao povo africano escravizado pelos navios negreiros. Quanto ao culto dos povos , por mais que já habitassem terras brasileiras e tivessem suas crenças, a concepção de Brasil deu-se início após a chegada dos portugueses – explica.

Ao contrário de outras religiões, a umbanda não é codificada. Ou seja, não existe documento equivalente ao Código de Direito Canônico, por exemplo, que organiza a Igreja Católica Romana. E se Brasil é tão extenso e cada região carrega suas próprias características e culturas, os terreiros possuem suas peculiaridades, ainda que a raiz seja a mesma.

– A nossa casa, por exemplo, só trabalha de branco, independente da gira. Em muitos terreiros, quando Exu e Pombagira descem, trabalham de preto e vermelho, mas aqui continuamos vestindo o branco – esclarece Mãe Cida.

– Exu e Pombagira são da linha da esquerda né?! Por que tanto receio e demonização da imagem deles? – indaguei.

– Eles são mais parecidos com nós, falam a nossa língua, bebem, fumam…

– Minha filha, as pessoas precisam entender que se Exu é rei, Pombagira é rainha. É comum que os leigos digam que eles são representações do demônio, ligadas ao satanismo, mas não é nada disso – interrompe, Olindo.

Os Exus, diferente do imaginário popular, neutralizam e retiram a densidade da carga com que as pessoas chegam ao terreiro, e depois encaminham para as Pombagiras, que abrem caminhos, trabalham por amor e prosperidade. Quando descem, essas entidades consomem bebidas alcoólicas e fumam charuto ou cigarros. Mas tem uma explicação. Para o babalorixá Marcelo Nascimento tudo o que acontece dentro de um terreiro têm uma razão.

– A fumaça, que também é utilizada, por exemplo, na Igreja Católica, por meio dos incensos, têm a função de limpar e de descarrego. Já o álcool ajuda os espíritos a acessarem o plano terreno – explica.

– Mas o preconceito com as religiões de matriz africana não está somente ligado à existência desses guias. Vocês têm alguma explicação, percepção? – indago.

– Além do medo do desconhecido, algumas práticas, supostamente, em nome da religião corroboram para a discriminação. Como os “pais-de-santo de poste”, que prometem amor em nome dos orixás ou terreiros que cobram para realização de um trabalho – exemplifica pai Marcelo.

Já a socióloga Jaqueline vai além e cita como fator para a discriminação da religião o fato de a umbanda ser afrodescendente em um país racista.

– O que está por trás da intolerância religiosa é o valor menor que se dá ao indivíduo negro na sociedade brasileira. – opina.

Se antes de entrar em um terreiro e acompanhar uma gira de perto eu tinha receio, entendo as outras pessoas também terem. A experiência é válida, sobretudo para quem é negro e quer recuperar ou entrar em contato com a sua ancestralidade. Acompanhar uma gira e conversar com os pretos velhos, é debruçar-se na história, é ouvir conselhos de uma bisavó que não teve a oportunidade de conhecer, é se permitir entender que firmar ponto, bater cabeça pro santo, vestir o branco, também é sinal de resistência.

Fonte: Alma Preta

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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