MORTES E DESAPARECIMENTOS DURANTE A DITADURA: UMA NOVA APROXIMAÇÃO SOBRE A VERDADE HISTÓRICA
O número de 434 mortos e desaparecidos durante a ditadura militar, reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2014, foi uma vitória dos seus familiares, dos movimentos pela anistia e de todos e todas que lutaram contra o estado ditatorial e lutam até hoje contra as limitações impostas ao estado democrático de direito, especialmente no campo da memória, verdade, justiça e reparação. Como tal deve ser celebrado, na condição de uma primeira aproximação oficial da verdade histórica, porque 434 não corresponde ao número e à diversidade social e cultural de pessoas mortas e desaparecidas durante a ditadura militar, como, aliás, alertava a própria CNV.
Por Gilney Viana
Contrapondo ao número de 434 reconhecidos pela CNV, o autor apresenta nesse artigo o número de 2.489 mortos e desaparecidos durante o período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988 (período estabelecido pela lei 10.536, de 14/08/2002, que alterou a lei 9.140 de 4 de dezembro de 1995, que fixou o limite inferior quando da quebra da ordem constitucional pela tentativa de golpe de 1961 e o limite superior, estabelecido pelo Art. 8º do ADCT, CF-1988, reconhecendo o caráter de exceção do governo do presidente José Sarney, eleito indiretamente segundo normas fixadas pela ditadura militar, até a data da promulgação da nova constituição). Esse número está aberto a discussão, na expectativa de alguma forma de reconhecimento, compreende principalmente camponeses, mas também religiosos, advogados, outros profissionais e indígenas associados aos conflitos de terra que, embora conhecidos, não foram reconhecidos; sendo certo que no caso dos indígenas há evidências de um número bem superior de mortos anterior, durante e posteriormente a este período, o que justifica a demanda por uma Comissão Indígena da Verdade, pleiteada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB.
O PROTAGONISMO DOS FAMILIARES
A bandeira do reconhecimento dos mortos e desaparecidos emergiu da luta pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita e ganhou uma dimensão política maior ao final dos anos 1970 e início dos anos 1980, com a atuação da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP), ainda no período ditatorial, e continuou no período democrático.

Do protagonismo dos familiares resultou o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964 (Dossiê), cuja primeira edição, de 1984, listou 339 nomes, e uma segunda edição, de 1995, com 398 nomes, e contribuiu fortemente para a criação e desempenho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), pela Lei 9.140, de 05/12/1995. Representou uma conquista democrática, embora limitada por severas restrições, como a que define como elegível ao reconhecimento apenas os casos dos que “tenham falecido, por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas” (art. 4º, I, a), o ônus da prova aos familiares e o prazo curtíssimo para apresentação dos requerimentos, o que já excluía a maioria dos casos de camponeses e indígenas.
Segundo o Relatório da CEMDP, de 2007, o Dossiê dos familiares “valeu como base e ponto de partida consistente para o rigoroso exame da Comissão Especial”. Em verdade, foi mais que isso: a luta dos familiares, com apoio de forças democráticas, alargou o conceito e os prazos da lei e conquistou o reconhecimento pela CEMDP de 317 casos do Dossiê, correspondendo a 81,7% do total dos 388 casos reconhecidos (deferidos) pela CEMDP/lei 9.140. Neste caso, o Estado trabalhou exclusivamente com os nomes indicados pelos familiares, via Dossiê e via requerimentos individuais apresentados. Aliás, é o que diz o próprio relatório da CEMDP: “O referido Dossiê, preparado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, valeu como base e ponto de partida para o rigoroso exame da Comissão Especial” (p. 19).
A VERDADE DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE
Pressionado por ações judiciais demandadas por familiares de mortos e desaparecidos políticos perante a Justiça brasileira e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, principalmente pela iminente condenação no julgamento do Caso Gomes Lund e outros X Brasil (Guerrilha do Araguaia), o Estado brasileiro criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), pela lei 12.528 de 18/11/2011.
A CNV teve méritos políticos inegáveis: possibilitou uma discussão pública sobre os crimes cometidos pela ditadura militar; provou que prisões ilegais, torturas, mortes e desaparecimentos forçados compunham uma política de Estado e não desvio de conduta de agentes subalternos nos “porões da ditadura”; identificou as cadeias de comando; e expôs os perpetradores dos crimes de lesa-humanidade, vale dizer, os torturadores, à execração pública.
Contudo, as assertivas qualitativas não tiveram correspondência quantitativa no que diz respeito aos mortos e desaparecidos.
Diferente da CEMDP, a CNV tinha a missão de “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do ADCT, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a conciliação nacional” (art. 1º) e não se limitaria aos casos de pessoas atingidas “por terem participação ou terem sido acusadas de participação em atividades políticas” – como exigia a Lei 9.140/CEMDP, ou tivessem cometido “crimes políticos”, como na lei de Anistia (LEI 6.683/1979).
Na prática, ou melhor, em seu relatório, a CNV adotou tanto o conceito de caso elegível (participação ou acusação de participação em atividades políticas) como a mesma fonte usada pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, ou seja, o Dossiê dos familiares, em versão revista e ampliada, de 2009.
Ainda assim, não se justifica a exclusão dos camponeses e aliados, a não ser que a CNV não tenha reconhecido o caráter genericamente político das lutas camponesas e negue o seu protagonismo político disputando não apenas terra, mas direito de cidadania, direito de ter direitos, reproduzindo o conceito colonial das classes dominantes agrárias.
A EDIÇÃO DO DOSSIÊ DOS FAMILIARES DE 2009 BALIZOU OS TRABALHOS DA CNV

A edição revista e ampliada do Dossiê dos familiares de 2009, agora sob o título “Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), listou 436 nomes, e a Comissão Nacional da Verdade, em seu Relatório (Tomo III) reconheceu 434 nomes de mortos e desaparecidos políticos, dos quais 427 constavam do Dossiê Ditadura.
O quadro abaixo mostra a relação entre reconhecidos pela CNV e pela CEMDP (equivalente a deferidos) e as respectivas edições do Dossiê dos familiares
| FONTE | Número de Reconhecidos | Contribuição dos Dossiês | % dos respectivos Dossiês no total |
| CEMDP | 388 | 317 | 81,7 |
| CNV | 434 | 427 | 98,3 |
Dos 434 mortos e desaparecidos forçados, como manda a lei 12.528/2011, reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade; 98,3%, ou seja, 427, são listados como mortos e desaparecidos políticos pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (Relatório de 2009), e 317, sob este mesmo conceito, deferidos pela CEMDP.
DA EXCLUSÃO DOS CAMPONESES, INDÍGENAS E ALIADOS
A CNV tomou conhecimento de milhares de mortes e desaparecimentos forçados através de “grupos de trabalho constituídos no âmbito da própria comissão”, reduzidos a Textos Temáticos “produzidos sob a responsabilidade individual de alguns conselheiros da Comissão” (p. 9, do Volume III). Igualmente aconteceu com as contribuições de variadas comissões da verdade, inclusive estaduais e municipais, publicações de entidades como a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que não foram levadas em conta para o reconhecimento de um caso sequer dentre os mortos e desaparecidos reconhecidos pelo Relatório da CNV.
Também não considerou contribuições de outros entes estatais, como foi o caso do relatório “Camponeses Mortos e Desaparecidos Políticos: Excluídos da Justiça de Transição”, que lista os nomes de 1.196 camponeses e aliados mortos e desaparecidos, dentre os quais 75 lideranças sindicais, 7 religiosos e 14 advogados, compreendendo o período de 02/09/61 a 05/10/88, elaborado por este autor para o Projeto Direito à Memória e à Verdade da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (DMV/SDE-PRE) e enviado à CNV a título de contribuição e também publicado em livro ainda em 2013.
Vale a pena confrontar os dados dos Relatórios da CNV e do DMV/SDH-PRE, e a atual lista deste autor, GAV/2025.
| PERÍODO | CNV/2014 | DMV/2013 | GAV/2015 |
| Anterior ao Golpe (02/09/62 – 30/03/64) | 11 | 4 | 59 |
| Ditadura Militar (31/03/64- 15/03/85) | 421 | 756 | 1062 |
| Período de Exceção (15/03/85 -05/10/88) | 2 | 436 | 947 |
| TOTAL | 434 | 1.062 | 2.068 |
Primeiro, as listas referentes ao DMV/2013 e GAV/2025 são compostas fundamentalmente de camponeses, porque assim indicam os dados históricos, enquanto a lista da CNV/2014 computa apenas 43 camponeses (vide quadro abaixo). Segundo, vê-se que o maior número de casos ocorreu durante a ditadura militar (31/03/64 a 15/02/85) em todas as três listas. Terceiro, no período de exceção (de 15/03/85 a 05/10/88), o Relatório da CNV registra apenas 2 casos, sendo um deles de uma liderança camponesa, contra 436 no Relatório DMV/2013 e 947 no GAV/2025, embora a CNV tenha sido informada sobre a guerra no campo durante os períodos de governo Figueiredo e Sarney, imposta pelos latifundiários e empresários rurais (agronegócio) e insuflada pela União Democrática Ruralista (UDR), sob o pretexto de defender a propriedade e combater a subversão, e que no fundo era uma disputa política sobre o lugar dos camponeses e indígenas no futuro estado democrático de direito.
A PROPOSTA DA SEGUNDA APROXIMAÇÃO DE 2.489 MORTOS E DESAPARECIDOS

Incorporando os 434 nomes de mortos e desaparecidos da CNV/2013 aos da lista GAV/2025, e eliminando as duplicatas, produzimos a segunda aproximação da verdade histórica com 2.489 mortos e desaparecidos, de 02/09/1961 a 05/10/1988, com a diversidade social exposta no quadro abaixo.
Número e Diversidade social dos mortos e Desaparecidos
| CATEGORIA | CNV/2014 | %/CNV | GAV/2025 | %/GAV | CNV+GAV | %/CNV+GAV |
| Estudante | 118 | 27,1 | 0 | 0 | 118 | 4,7 |
| Operário | 64 | 14,7 | 0 | 0 | 64 | 2,8 |
| Camponês | 43 | 9,9 | 1.785 | 86,3 | 1.785 | 71,7 |
| Militar | 36 | 8,3 | 0 | 0 | 36 | 1,4 |
| Professor | 28 | 6,4 | 0 | 0 | 28 | 1,1 |
| Profissional Liberal | 26 | 5,9 | 0 | 0 | 26 | 1 |
| Bancário | 7 | 1,6 | 0 | 0 | 7 | 0,3 |
| Advogado | 7 | 1,6 | 18 | 0,8 | 18 | 0,7 |
| Religioso | 4 | 0,9 | 8 | 0,3 | 8 | 0,3 |
| Indígenas | 0 | 0 | 193 | 9,3 | 193 | 7,7 |
| Outros | 101 | 23,3 | 105 | 5.1 | 206 | 8,3 |
| TOTAL | 434 | 99,7 | 2.068 | 101 | 2.489 | 100 |
A categoria com maior frequência na lista CNV é a dos estudantes, com 27,1%, enquanto na GAV/2025, é a dos camponeses (86,3%), e na proposta de segunda aproximação (CNV+GAV) 71,7%; em tal proporção, é que se pode dizer que a lista da CNV é fundamentalmente urbana e as duas outras, rural e camponesa. De igual visibilidade é a ausência de indígenas na lista da CNV, contra 193 na lista GAV/25 e na lista GAV+CNV.
As mesmas razões, fundadas e justas, de reconhecimento de João Pedro Teixeira, Wilson Pinheiro da Silva, Raimundo Ferreira Lima, Margarida Maria Alves e Nativo da Natividade de Oliveira, pela CNV (vide os respectivos verbetes do Relatório da CNV, V. III, que mostram a ação de pistoleiros em associação, conivência ou omissão de agentes do Estado) valem para outros 27 presidentes de Sindicatos de Trabalhadores Rurais e para o conjunto de 1.742 camponeses mortos e desaparecidos, como também para seus aliados, religiosos e advogados.
Sem negar os 434, está na hora de afirmar uma nova aproximação da verdade histórica.
Gilney Amorim Viana – Ambientalista. Escritor. Ex-Preso Político. Conselheiro da Revista Xapuri.





