VERÍSSIMO CHEGA AO CÉU 

VERÍSSIMO CHEGA AO CÉU 

VERÍSSIMO CHEGA AO CÉU 

Com o nome na lista dos potenciais cidadãos brasileiros bem-vistos, preparada pelo Departamento de Estado, a chegada do Veríssimo no Paraíso só aconteceu na manhã da segunda-feira, 1º de setembro, depois da questão ser esclarecida pelos burocratas celestiais.

Por Antônio Carlos Queiroz – ACQ 

– Caramba, mais um dia de atraso e eu perderia a abertura do julgamento do Bolsonaro. No Limbo não tem televisão – imprecou o saxofonista gaúcho.

Depois da recepção com tapete vermelho na portaria do São Pedro, Veríssimo tocou o piano, assinou a papelada, e logo foi levado para a sua dacha eterna pra tomar uma ducha. Beliscou uns canapés, tomou um gole de Bordeaux da excelente safra de 2010, e fez uma anotação no moleskine: “Perguntar a São Pedro: ‘In vino, veritas’, ok! Mas em que garrafa?”

Ainda cabreiro por ter vindo parar nos Campos Elíseos e não num deserto siberiano de vulcões ativos, onde certamente encontraria o Paulo Vanzolini, o Dalton Trevisan e o Nelson Rodrigues, nosso herói resolveu dar uma sapeada nos arredores. Ali, um grupo de velhinhos jogando gamão, acolá outro brincando de bocha. Adiante, mulheres reunidas numa varanda tricotando colchas em ponto arroz, aparentemente falando mal de alguém. Por quê?

Porque cochichavam…

– Ih, já vi que a natureza humana não muda nem aqui! – pensou o escriba tomando carona numa frase do Doutor House.

Quinze minutos de caminhada depois (“Um paradoxo, cogitou, dado que não há tempo na Eternidade”), Veríssimo encontrou sua turma: o Jaguar, recém-chegado, o Millôr, o Ariano Suassuna, a Nélida Pinhão, a Heloísa ex-Buarque de Hollanda, e meia dúzia mais desse tipo de gente. Acabou tendo uma crise de incontinência emocional ao encontrar o Érico, seu pai. Pensou em tomar umas gotas de Rivotril pra se acalmar, mas percebeu que a sua camisola de linho branco, inconsútil, nem tinha bolsos.

Cumprimentos efusivos após, soube que os amigos estavam discutindo a

entrevista da Aurora Fornoni Bernardini à Ilustríssima do domingo. O Suassuna havia catado a peça na Internet, concordando 80% com a professora. (O engraçado é que até aquela hora ninguém havia feito um trocadilho com o nome do meio dela).

– Não dá pra comparar o Itamar com o Afrânio Peixoto, meus amigos – disse o Ariano.

– O Sarney, sim, mas eu nunca soube que o Itamar tivesse escrito qualquer coisa – espantou-se o Veríssimo.

– Ah, não, esse é outro, o Vieira – esclareceram.

– Parente do António?

– Já vi que as discussões com o Luisinho vão ser animadas – cochichou a Nélida no ouvido da Helena.

Fato é que a discussão foi longe. O Suassuna tratou de botar ordem no debate, elencando critérios para o julgamento. “Subliteratura, literatura mediana e alta literatura são medidas de gosto” – ensinou. “Não podemos perder de vista as questões de forma e de conteúdo; linguagem, estrutura, gênero, de um lado, e temas, ideias, enredo, personagens etc., do outro. Tem gente que não separa o plano da história do plano do discurso. O estilo define a literatura assim como define o homem? – acrescentou, com uma indagação.

– Letras de música como as do Gil são literatura? – provocou a Nélida.

– Bem, o Prêmio Nobel laureou o Bob Dylan – replicou o Jaguar.

O Millôr, um dos primeiros a reconhecer a mestria literária da Ana Maria

Gonçalves (Um Defeito de Cor), ainda em 2007, lascou: “E a Cassandra Rios? E os Catecismos do Zéfiro?”

O papo esquentou, quase desandandando para os sopapos até que a turma se acalmou com a chegada da Hilda Hilst de braço dado com a Dercy Gonçalves, sempre falante:

– Gendedeus, eu preciso apresentar pra vocês a banda do Gabi, um querubim que eu conheci ontem!

Caladão, o Veríssimo ia assuntando essas e outras. De vez em quando fazia anotações no moleskine, quem sabe, assuntos para as próximas crônicas.

Estava feliz por descobrir que o seu Alzheimer tinha passado ali no Céu, sem

deixar traços. A certa altura propôs: “Que tal a gente discutir na próxima vez

os filósofos do Brasil? O Olavo, que tomou o Planalto, dá umas três sessões. O

filósofo do Bradesco talvez meia”.

– Filósofo do Bradesco, quem é? – perguntou o Antônio Cícero.

– O Leandro Karnal, ué! Carne e unha com o Capital!

Dito isso, o Veríssimo se levantou, deu um gudibai pra turma e saiu saltitante pelos campos de alfazema, já se sentindo em casa. Diz o Millôr que ele foi pra casa recitando versos do Paradiso:

Veramente quant’io del regno santo           Tudo o que eu puder do reino santo

ne la mia mente potei far tesoro,                 entesourar no meu entendimento,

sarà ora materia del mio canto.                   será matéria agora do meu canto.

acqACQ – Antônio Carlos Queiróz. Jornalista. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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