Vivas nos queremos
[…] quando estudo certas histórias para compor cenários, porque a violência é a matéria prima do meu trabalho, elas ficam entranhadas no meu sangue e correm feito loucas por minhas veias. As imagens do desespero não são esquecidas facilmente, e é como se escutasse em minha mente o barulho das mortas.
Antônia Tavares
Por Leonísia Moura/Redação Varadouro
Num piscar de olhos, já se vão dez anos em que estudo violência contra mulheres e atuo no seu enfrentamento. Poderia dizer que acumulei conhecimento nesse percurso, mas quando nos dedicamos a entender a fina matéria vida, a compreensão se veste da utopia do poeta Galeano e parece se distanciar quanto mais nos aproximamos dela, nos restando apenas seguir caminhando no seu rastro. Mas isso tem um custo.
Se não posso me gabar de ter ficado mais sabida, peço licença para reclamar que me sinto um tanto quebrada. Escutar mulheres que sobreviveram à violência, revirar processos judiciais, laudos cadavéricos, boletins de ocorrência e exames de corpo de delito tem um custo à nossa subjetividade.
Digo de nós que temos dedicado boa parte de nossas vidas a olhar fundo nos olhos da morte patriarcal e a examiná-la desde os dentes até as entranhas, movidas pela esperança de um dia assistir à sua decadência. Mas enquanto esse dia não chega, vamos convivendo com essas palavras que se juntam para narrar o horror, permeadas por imagens de corpos ensanguentados em suas próprias camas ou em putrefação numa vala qualquer.
Não é o tipo de trabalho que deixamos para trás no fim do expediente, ele vai morar sob a pele, nos encontra nas esquinas do sono, cutuca nossas próprias histórias de violência e abre úlceras quando nos vemos atravessando novas violências de gênero, que variam de frequência e intensidade, mas nunca cessam. E é como viver com um alarme ligado, a gente não sabe muito bem quando ele vai disparar, mas ele tá lá, nos mantendo em alerta mesmo quando deveríamos estar em repouso.
As pessoas que nos querem bem sabem que trabalhamos com isso e nos mandam notícias de toda sorte de violência contra mulheres. Elas estão indignadas e sabem que nós partilharemos de sua indignação, mas é duro quando essas notícias nos encontram no bar, na praia ou na cafeteria. Talvez eu devesse usar menos o celular quando estou em lazer, mas é certo que a imprensa acreana tem sido muito infeliz, para dizer o mínimo, ao noticiar as mortes violentas de mulheres em razão do gênero, o feminicídio.
Estamos pisando em um dos chãos que mais mata mulheres no Brasil e eu tenho insistido que a mão que puxa um terçado não é o movimento de um corpo só, mas de toda uma estrutura que violenta e vulnerabiliza meninas e mulheres ao longo de toda sua existência. E não há paz nem mesmo após a morte quando jornais e blogs noticiam o crime com imagens das vítimas vilipendiadas pelos seus algozes. É preciso dizer o óbvio: uma vítima nunca é só uma vítima.
Ser vítima é o último ato de uma vida que amou e foi amada, que trabalhou, que gozou, que riu, que despertou olhares, que provocou e amenizou conflitos, que chorou, que enxugou as lágrimas (suas e de outros) e que trabalhou – sim, de novo, porque nesta terra se trabalha à exaustão para se ganhar a vida com um mínimo de dignidade.
E não é apenas como matéria violentada que essas mulheres devem ser eternizadas na terra árida da Internet. Não é assim que suas famílias as querem lembradas. E não devem ser essas as condições para familiares e amigos elaborarem seu luto.
Há documentos jurídicos que alertam para o direito à memória das vítimas de feminicídio, um direito que seus entes queridos exercem em vida, marcada por essa dor intransponível. Um direito muito pouco explorado visto que a maior preocupação do Sistema de Justiça, em sua maior parte, ainda é punir os autores do crime.
Uma preocupação essencial, é verdade, mas que nem de longe deveria ser a única ou a mais importante. Se não podemos comprovar cientificamente que há a vida após a morte, nos atentemos para os que seguem vivos e enlutados, é preciso encontrar meios de não aprofundar as dores das pessoas que perderam alguém para o feminicídio. E nos atentemos para os múltiplos sentidos da palavra vida.
Há uma vida orgânica que é interrompida pela violência, mas a vida simbólica, mobilizada pelas memórias e sentidos que a existência de alguém provocou no mundo deve ser preservada como um tesouro. Quando enxergarmos, enquanto Estado, enquanto meios de comunicação e enquanto sociedade o quão valioso é a dignidade de uma vida, talvez consigamos pensar menos em punição e vingança e mais em memória, reparação e esperança.
Por que os veículos midiáticos insistem em noticiar a morte de uma mulher como um pedaço inanimado de matéria orgânica vilipendiado até o último suspiro? O que se ganha com a banalização da vida? E por que seguimos silentes diante dessas imagens de horror? Eu cá tenho minhas especulações, mas chega de conversar comigo mesma, por hora, estou mais interessada em colocar perguntas, quiçá elas encontrem respostas de mais corações que anseiam pelo fim do patriarcado.
Leonísia Moura – Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul. Pesquisadora feminista e militante de direitos humanos. Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.
leonisia.mouraf@gmail.com
Fonte: ovaradouro