Defensoria e organizações questionam no STF legislação que facilita comércio ilegal de ouro no Brasil

Defensoria e organizações questionam no STF legislação que facilita comércio ilegal de ouro no Brasil

Crise Yanomami expõe as consequências da aplicação da presunção de boa-fé na autodeclaração de origem do minério.

Por Equipe ISA/Redação

A repercussão da crise humanitária imposta aos Yanomami pela ação do na colocou em evidência aspectos problemáticos da regulamentação do comércio de ouro no Brasil e que facilitam a ilegalidade nessa cadeia. Um dos principais é a aplicação da chamada “presunção de boa-fé” na autodeclaração de origem do minério quando proveniente de lavras garimpeiras, procedimento que acaba sendo aproveitado para “limpar” o ouro obtido de forma ilegal. Na prática, para atestar que o minério foi extraído de forma legal, basta uma declaração de quem está fazendo a venda, sem qualquer tipo de checagem da informação.

A DPU (Defensoria Pública da União), o WWF-Brasil, o Instituto Alana e o Instituto Socioambiental (ISA) solicitaram, no Supremo Tribunal Federal (STF), o ingresso como amicus curiae (amigo da corte) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7273, de autoria do PSB e da Rede Sustentabilidade, que questiona a presunção da boa-fé na comercialização de ouro.   

A ação reivindica, com pedido de medida cautelar, a inconstitucionalidade do parágrafo 4º, do artigo 39, da Lei n. 12.844/2013, que instituiu a presunção de legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente.

A ADI pretende tornar obrigatório que as DTVMs (Distribuidora de Títulos e Valores Imobiliários) – “únicas instituições autorizadas a comprar e revender ouro de garimpo” – estabeleçam mecanismos que certifiquem que o ouro comprado tem origem legal e que o processo de aquisição está livre de violações aos direitos humanos.

De acordo com Juliana de Paula Batista, advogada do ISA, “é urgente que o STF analise a questão, pois a rastreabilidade do ouro é uma das medidas necessárias para coibir o garimpo ilegal”. Hoje, no Brasil, qualquer peça de ouro, comprado em qualquer joalheria ou loja pode ter saído de um garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.

Atualmente, o ouro só pode ser comprado por Postos de Compra de Ouro (PCO), que são os braços das DTVMs nos municípios brasileiros. Neles, os vendedores apresentam documentação pessoal e número do processo minerário de origem, que corresponde à área autorizada de onde o ouro teria sido extraído.

Como esse procedimento não tem rastreabilidade, frequentemente são apresentados processos que não correspondem à verdadeira origem do minério. É assim que o ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena Yanomami e de outras áreas protegidas chega ao mercado.

Segundo o MapBiomas, mais de 90% da área garimpada no Brasil está na Amazônia, sendo o ouro o principal minério buscado, representando 83% desse total (162.659 hectares). Proibido pela Federal, o garimpo em Terras Indígenas aumentou 625% nos últimos 10 anos, ressalta o pedido das entidades.

Dados inéditos levantados pelo WWF sobre o garimpo ilegal na Bacia do Tapajós apontam que, somente nos municípios paraenses de Itaituba e Jacareacanga – detentores de mais de 35% da área garimpada no Brasil –, os índices de ilegalidade chegam a 90% e 98%, respectivamente.

Mercúrio e malária

O pedido ainda alerta para as graves consequências socioambientais da falta de controle da cadeia do ouro, com a “contaminação da água, do solo, das pessoas e dos animais a níveis alarmantes”. Um dos principais problemas é a contaminação provocada pelo mercúrio, substância utilizada na garimpagem do ouro.

Estudo da Fiocruz em parceria com o ISA, de 2016, comprovou que, em algumas aldeias Yanomami, 92% das pessoas examinadas apresentavam altos índices de contaminação. Mais recentemente, levantamento feito com apoio do ISA revelou índices de contaminação por mercúrio acima dos estabelecidos pela Organização Mundial da (OMS) em peixes coletados em rios de Roraima.

uso de mercúrio na terra yanomami
📷 Daniel Marenco

O mercúrio liberado de forma indiscriminada no pode permanecer por até cem anos em diferentes compartimentos ambientais e provocar doenças, como alterações neurológicas e psicológicas em adultos e atrasos no desenvolvimento de .

Outro grave desdobramento da invasão garimpeira em Terras Indígenas é a malária, que encontra terreno fértil para sua proliferação nas zonas de garimpo, devido às poças d’ água formadas pelas máquinas e que estimulam a reprodução dos mosquitos transmissores. Depoimento de um indígena Yanomami à DPU, incluído no pedido de amici curiae das entidades, relata o impacto da atividade em sua comunidade.

“Os olhos de vocês não são tão compridos para enxergar o que está acontecendo. (…) Nesses últimos 6 meses, passamos o pior período, , malária, você olha para as moças elas estão só o couro e osso. O que vocês acham que aconteceu para que chegássemos até aqui? A causa é a presença do garimpo. Eles trazem a malária e a escassez de tudo. (…) As pessoas com fome e doente não conseguem fazer a roça. Sem a roça não haverá comida no futuro”, narrou.

Instâncias internacionais

Os autores também destacam que medidas para proteger a vida, integridade e saúde dos Yanomami e Ye´Kwana também já foram deferidas pela a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), de julho de 2022, que determinou medidas provisórias ao brasileiro para proteção integral da saúde, alimentação e dos Yanomami, Ye’kwana e Munduruku.

“A não adoção das medidas necessárias para fazer cessar o garimpo ilegal, especialmente em Terras Indígenas e em áreas protegidas, reforça a posição do Estado brasileiro de não cumprir a decisão emanada pela Corte Interamericana. Por outro lado, a presente ADI tem o condão de tornar a legislação nacional menos permissiva ao ouro extraído ilegalmente, com severas repercussões à vida, à saúde e à segurança dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Importa sublinhar que o ouro que sai da Terra Indígena Yanomami é extraído ilegalmente em sua totalidade, vez que se trata de Terra Indígena e, portanto, não tem origem em lavras garimpeiras com autorização para a extração do minério.”, escreveram os autores.

Fonte: Instituto Socioambiental (ISA). Foto: Garimpo na região do Rio Mucajaí, Terra Indígena Yanomami. Operadores “esquentam” ouro adquirido de forma ilegal para ser vendido no mercado. Daniel Marenco. Este artigo não representa a opinião da Revista e é de responsabilidade do autor.
 
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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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