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CARTA DE QUIXOTE A ZANIN: ENTRE MOROS E CRISTIANOS

de Quixote a Zanin: entre Moros e Cristianos

Se dobrares a vara da Justiça, que não seja consequência do peso do suborno e do compadrismo, mas sim do da misericórdia(Cervantes, D. Quixote. Cap. XLII. Conselho a Sancho Pança). La Mancha, 3 de agosto de 1605. 

Por José Bessa Freire

Prezado Cristiano Zanin,

Sou o fidalgo castelhano Dom Quixote, filho de Miguel de Cervantes e te escrevo daqui do Salão dos Mortos, em Valhalla, para te parabenizar por tua posse no próximo dia 3 de agosto como ministro do STF – Supremo Tribunal Federal. 

Talvez possam te servir no exercício do poder os conselhos quixotescos que dei há mais de 400 anos a meu fiel escudeiro Sancho Pança, quando foi ele nomeado governador da Ilha Barataria.  

Advirto, porém, que o adjetivo “quixotesco” no Brasil é depreciativo, sinônimo de trapalhão e lunático e, no melhor dos casos, de sonhador delirante. 

É que o espelho pragmático da não reflete o sonho legítimo, que nos convida a lutar por uma menos desigual. Os apedeutas, então, manobram para que nós, os quixotes, renunciemos à luta pela justiça e para isso debocham e ridicularizam a utopia, como fizeram na sabatina do Senado. Centrão dixit.

CARTA DE QUIXOTE A ZANIN: ENTRE MOROS E CRISTIANOS
 Foto: Divulgação/ @AlicanteOut

MORO E CRISTIANO 

Esta sabatina lembrou a guerra entre Moros y Cristianoscelebrada ainda hoje na Espanha com uma festa tradicional para comemorar a expulsão dos árabes que, no séc. VIII, invadiram a Península Ibérica, retomada pelos reis cristãos séculos depois. 

Os participantes se dividem em duas facções – os moros e os cristianos – vestidos a caráter, numa ambientação histórica que teatraliza a Reconquista.

Os árabes muito contribuíram nas áreas das ciências, da matemática e até do Direito. A tradição islâmica de mais de 1.400 anos, generosa com os povos que fogem de perseguições, influenciou o moderno direito internacional do asilo, como reconhece livro recente editado pelo ACNUR – Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados.  

Não foi o caso da versão brasileira dos Moros, aqui a malta magna nada aportou de civilizatório, ao contrário representou o negacionismo da e do humanismo. No senado, buscou confundir os desinformados. 

Um deles, o Moro no singular, é aquele ex-juiz da Lava-Jato, que desmoralizou a luta tão necessária contra a , quando a usou para obter vantagens pessoais e políticas. Nomeado ministro da Justiça, cobiçava este teu lugar, o que seria um pesadelo para o país. Mas ele é Moronão é Cristiano.

Agora, esse Moro de igarapé vomitou no Senado a mentira deslavada de que foste o padrinho de casamento do e, devido a tal intimidade, não poderias ser indicado para o STF. Se não for verdade, peço desculpas – disse cinicamente, plantando dúvida na mente dos ouvintes incautos. 

Ignorou que há três anos, ele sim, foi padrinho de casamento da Carla Zambelli, a quem “pouco conheço” e com quem “nunca tive qualquer relacionamento pessoal” – assegurou contraditoriamente, depois que com ela brigou.

Moroo Sérgio, está sendo processado no STF, acusado pelo advogado Tacla Durán de cobrar “taxa de proteção” para “aliviar” os alvos da operação Lava Jato. Com o fiofó na mão, ele queria saber se provas obtidas de forma ilícita podem ser usadas para condenar alguém, como fez um certo juiz com voz de marreco quando foi contaminado pela “Síndrome de Hybris”.

A DOENÇA DO PODER 

Essa doença foi assim denominada pelo neurologista inglês David Owen, em referência a Hybrispersonagem da mitologia grega que, ébrio de poder, passou a se comportar como um deus e a mostrar que era um filho da mãe Dyssebia (Impiedade). A primeira reação de Sancho ao ser nomeado governador mostra seu deslumbramento:

Não existe nada mais delicioso do que mandar e ser obedecido. Imagino que é muito bom dar ordens, mesmo que seja para um rebanho de ovelhas dóceis – me disse Sancho. Ou, abrasileirando a frase, “é simples assim, um manda, o outro obedece” – como falou um general cloroquinado, obedecendo a um capitão.

Sancho, felizmente, foi logo vacinado, quando o duque responsável pela nomeação sugeriu que ele vestisse o traje pomposo de governador, pois a dignidade do cargo não permitia o uso da farda de um soldado, a batina de um sacerdote ou os trapos mequetrefes de um camponês.  

Cristiano, vais usar a toga profanada pelo golpista Willian Lima, que invadiu o STF no 8 de janeiro e vestiu-a simulando ser Batman. Vê, pois, a resposta de Sancho:

Podem me vestir como quiserem, com qualquer fantasia, porque de qualquer forma que esteja vestido serei sempre Sancho Pança.

Prezado Cristianousa a veste talar, mas não deixa o Poder te adoecer. Mantém fidelidade ao menino modesto e inteligente, que nasceu em Piracicaba em 15 de novembro de 1975 e, republicano, cultivou um senso de justiça agudo.

Sei que tinhas fama de católico conservador de direita, quando estudante na PUC-SP. Dizem as temerosas línguas que talvez esteja nascendo no STF um novo Dias Toffoli, aquele ministro que confessou ter condenado o ex-presidente do PT José Genoíno, “mesmo sabendo que era inocente”.

A TOGA DE BATMAN

De qualquer forma, com o objetivo de contribuir modestamente para que isto não ocorra, adapto aqui pra ti os conselhos que dei a Sancho, quando ele assumiu o cargo de governador da Ilha e ficou deslumbrado com o poder.

Em primeiro lugar, prezado Cristiano, não atribuas apenas a teus méritos a indicação para ministro do Supremo, mas dá graças ao céu que dispõe sobre esses assuntos. Dessa forma, poderás avaliar a grandeza do ofício e da carreira no STF e hás de temer a Deus, porque nisso reside a sabedoria e sendo sábio não errarás em nada.

Em segundo lugar, para fazer justiça procura saber quem és tu, tenta te conhecer, que é o conhecimento mais difícil de se obter. Se conseguires, não terás o mesmo destino do da fábula de Esopo, que inchou para ficar igual ao boi e acabou explodindo.

Em terceiro lugar, não desprezes os pobres, os indígenas, os negros, os discriminados. Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais justiça do que as versões do rico. Procura descobrir a verdade escondida detrás das promessas e das propinas dos ricos, da mesma forma que detrás dos soluços e lamúrias do pobre. Mas se por acaso dobrares a vara da justiça, que pelo menos não seja em consequência do peso do suborno e do compadrismo, mas sim do da misericórdia.

Falo assim pensando no teu voto na questão do Marco Temporal. Por último, não confies nos puxa-sacos do Centrão ou nos rapapés do Flávio Rachadinha. E aceita os cumprimentos de quem te admira.

P.S – Dizem os entendidos que a tendência deste verão para os homens são os cabelos penteados com brilhantina com efeito wet look retrô dos anos 50. A neta do Taquiprati, de 12 anos, que me psicografa, viu a sabatina na TV e disse: – Vovô, o penteado dele arrasou. Melhor que a cabeleira xexelenta do Moro. 

Jose Ribamar BessaJosé Bessa Freire . Jornallista. Escritor. Blogueiro e gestor do Taquiprati Membro do Conselho Editorial da . Foto: Charge: Divulgação/ Spacca.

 
 
 
 
CARTA DE QUIXOTE A ZANIN: ENTRE MOROS E CRISTIANOS
Imagem -Divulgação/Internet
 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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