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SONHOS

SONHOS

Apareceu um guerreiro com uma flecha na mão esquerda, e a ponta da flecha era como o pendão do trigo que está maduro. O guerreiro flutuava e dançava. Era uma roda de guerreiros dançando a dança ritual dos Krenak. Ele me levou para um mundo do futuro e me colocou sobre um barco de luz: “Não tenha medo, é aqui que você tem sua herança. Você vai saber de onde veio e para onde está se dirigindo.

Por Ailton Krenak 

Foi o sonho da tradição que me deu o caminho a seguir. Deu-me a vitalidade e o sentido de estar conectado com os antepassados. Tomamos decisões importantes quando sonhamos. No sonho, enxergamos qual o caminho a seguir. Se não conseguimos sonhar, nada acontece. Esperamos sonhar. 

Acompanhando meu pai, que ia perdendo o orgulho por estar na cidade, pensava no que eu estava fazendo neste mundo. Éramos seres estranhos, sem capacidade alguma, a errar pela metrópole. Sofria pensando que as gerações seguintes perderiam a noção de si e de suas origens. Pensava na necessidade de encontrar algum meio de recuperar a memória de conexão com os antepassados. 

Como manter o vínculo da terra ancestral com a cidade? Precisava encontrar um meio de voltar a recuperar a terra ancestral. A forte lembrança sobre a herança cultural era como se fosse uma paixão. Apaixonado é que consigo estar na porta do mundo ancestral. Quando tive o despertar de ser um herdeiro da minha cultura, veio-me a decisão de trabalhar com reverência e humildade para com a nossa tradição.

Todavia, quando trabalhava arduamente, percebi as minhas limitações e o quanto sou pequeno para trabalhar sozinho. Foi então que sonhei. Passei a receber ensinamento dos sonhos, como é o costume da nossa tradição.

Não é todo mundo que tem acesso à linguagem do sonho. Assim como há pessoas que dominam facilmente os instrumentos musicais, há os que esforçam e não dominam. Do mesmo modo, há quem tenha vocação para o mundo do sonho. E os que têm vocação, ao acumular treinamentos e experiências, conseguirão entender sua linguagem.

Por exemplo, entre os Xavante há o “sonhador”, que se especializa em sonhar. Ele vive uma vida de abstinência e treinamento espiritual para desenvolver esta capacidade. Para isso, ele tem um local de estudo, como se fosse uma universidade. 

Quando a aldeia se defronta com uma necessidade de saber sobre o seu futuro, os Xavante recorrem a este sonhador. Então esperam dias seguidos até que ele sonhe. Logo que ouvirem o sonho, eles tomam a sua decisão.

Ao contar o sonho que tive ao ancião sonhador Sibupá, do povo Xavante, ele me perguntou insistentemente sobre os detalhes.

O rio estava cheio ou vazio? Qual o pássaro que apareceu? É assim que ele ensina sobre o significado do sonho narrado. Se sonhei com coruja, o significado do sonho é um. Jacaré já tem outro sentido. 

Os animais cumprem uma função de mensageiro e podem representar algumas situações. Como se pode estudar por livros, podemos aprender com os sonhos. Saber o que o meu sonho quer dizer me permite decidir sobre o caminho a seguir.

Sonhos KrenakAilton Krenak Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Conselheiro da Revista Xapuri, em Um rio, um pássaro, Dantes Editora, 2023 Dantes.

Foto: Divulgação/ Marcelo Santos Braga

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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