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A LENDA DO RIACHO DAS ALMAS

A LENDA DO RIACHO DAS ALMAS

a lenda do riacho das almas

Quero , quero água/Quanto custa sua alma? O conto do Riacho das Almas – Lá para as bandas do Chapadão Sem Fim, nos cafundós do mundo, entre gerais, veredas e grotas, existia um pacato povoado denominado de Riacho das Almas.

Por Altair Sales Barbosa

Esse povoado, com algumas casas de adobe, de taipa e pequenos comércios, tomou emprestado seu nome de um riacho de água cristalina que lavava os quintais das casas e saciava as necessidades daquela população rural.

A ali era um misto de subsistência e extrativismo, sendo que a atividade era principalmente baseada no pequi, no buriti e na fabricação de rosários de coco da palmeira licuri.

O pequi era consumido cozido. Seu consumo se fazia juntamente com o feijão ou arroz. Desse fruto também se retirava a polpa, que era colocada para secar ao sol e depois era usada como ingrediente no preparo de sabão de diquada. A castanha também era bastante aproveitada. Retirada dos frutos secos ao sol, era consumida diretamente ou usada no preparo do cuscuz, beijus e paçoca de doce. Do pequei, ainda se preparava o óleo usado de diversas formas.

Do buriti, usava o imbé para o fabrico de cordas. As palmas eram utilizadas na cobertura de galinheiros e oficinas. Do coco, por um processo complicado, retirava a polpa para o fabrico de doces. A paisagem era era de pequenos roçados nos fundos dos quintais, irrigados por um rego d’água oriundo das partes mais altas do riacho. A era uma constante rotina de trabalhar, comer, dormir e amar.

As mulheres, além de ajudar nas tarefas agrícolas, cuidavam dos afazeres domésticos. Todas as vasilhas eram lavadas nas águas do riacho. A água para os potes e moringas das casas também era trazida pelas mulheres, em latas de querosene. Dia de lavar roupa parecia um festival. Os tecidos dependurados em varais e cercas de arame se assemelhavam a bandeirolas que se agitavam ao canto das lavadeiras. A vida dos homens se resumia na lida com pouco gado, em cuidar de plantações, negócios e pequenos comércios ali existentes.

Na época da era comum os vaqueiros transportarem o gado para os gerais e veredas para pastar o capim que ali se mantinha viçoso. Na trajetória, os cantos de aboio eram o entretenimento para homens e animais. Em época de penúria, a mortalidade infantil aumentava muito e era comum ver cortejos cruzando o pequeno povoados, em cantos de lamentações, com um anjinho morto dentro de uma rede já desgastada pelo uso, seguindo em direção a um rústico cemitério.

Mas Riacho das Almas tinha também seus momentos de alegria.

Nas noites de lua clara eram comum o povo se reunir na improvisada pracinha, debaixo da mangueira, para ouvir os causos de seu Avelino, ás músicas cantadas pelo cego Zé Caetano e acompanhadas pelo próprio com um rabequinha tosca. Também faziam parte da cantoria os repentistas Zé Luís e Zé Viola, quase sempre acompanhados pelo afinado tambor do Veio Martelo. Havia também outros cantadores violeiros e rabequeiros, como dona Dominga da Rabeca, Salustiano, Piaba, e aboiadores.

Vez por outra, nas passagens de ano, aparecia, sabe-se lá donde, algum grupo de Reis de Zabumba, que na sua efêmera peregrinação por aquelas bandas irradiava muita alegria. O povo de Riacho das Almas era muito musical. A musicalidade estava em quase todos os momentos da sua labuta, de sua luta diária. Depois tudo voltava ao normal, à pacacidade e simplicidade de sempre.

Entretanto, entre muitos causos e acontecimentos anormais tiravam o sossego daquele povo sofrido. Às vezes eram histórias de um lobisomem que aparecia por lá, deixando marcas visíveis no solo arenoso. Às vezes eram ataques de Romãozinho, que atirava pedra nos telhados, ateava nos colchões de palha, imundície nas panelas sobre o fogão de lenha e chegava até a abrir torneira das dornas  que armazenavam a cachaça ali produzida. Quando um acontecimento era identificado como ações do Romãozinho, o povoado era um converseiro só.

Contam os amigos que um  dos acontecimentos mais impressionantes foi resolvido por milagre de uma velha anônima que por lá apareceu.

Dois irmãos ainda jovens, a moça tinha por volta de 18 anos, o rapaz um pouco mais velho – se apaixonaram e no limite entre a razão e a paixão cometeram o incesto e depois fugiram. A população, toda meio aparentada, não aceitava aquela indignação, ficava nervosa, alguns até adoeceram. Prometeram, enfim, rezar uma novena para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, para que os dois irmãos voltassem.

Numa tarde de domingo, quando o povo estava se juntando para rezar uma das partes da novena, o povo observa atônito uma velha saindo do cemitério local. Tratava-se de uma velha senhora cheia de balangandãs, trapos, apitos, copos de alumínio e outras coisas. Ela era mais parecida com uma andarilha perdida.

A população, assustada e com certo temor, clamava por todos os Santos. Uns faziam uma cruz na areia, outros ficaram imóveis. E, assim, a velha senhora foi-se aproximando do grupo dizendo que estava ali para curar um grande mal. Colheu no quintal da casa algumas folhas de capim de cheiro, fez um chá e docemente pediu aos presentes que bebessem um pouquinho daquela poção mágica. Os presentes assim o fizeram. E, quando menos esperavam, a velha senhora desapareceu.

Três dias depois, os irmãos fugitivos, arrependidos, retornaram ao povoado e foram recebidos com um misto de alegria e desconfiança pela população. Contam que por muito as mulheres não dormiam mais sozinhas e atordoadas pelo medo, mesmo com seus maridos em casa, passavam a noite com os candeeiros acesos.

O povoado de Riacho das Almas ficava no limite entre o Cerrado e a Caatinga. O tendia mais para o semiárido. Era comum ciclicamente acontecerem épocas de secas prolongadas trazendo muita penúria e . Quando esse tempo chegava, era frequente acontecer as “preces” para pedirem chuvas.

Trata-se de um ritual que reúne grupos de senhoras e que, ao som de louvações, em procissões de fila única e carregando à cabeça garrafas com água, se dirigiam até um cruzeiro meio distante, onde, ajoelhadas, despejavam ao som de uma cantoria as águas contidas nos vasilhames. Ao terminar, voltavam em filas entoando hinos de louvações até às margens do riacho, quando então se dispersavam.

Assim era a vida em Riacho das Almas até que, num belo dia, chega ao povoado uma figura pitoresca, simpática, de cor branca, barbas longas, descalço, aparentando ter entre 35 e 40 anos, trajava uma batina marrom e na cintura trazia um cordão de São Francisco e um grande crucifixo de madeira. Carregava um embornal de pano, cujo conteúdo era ignorado.

O povo de Rio das Almas, vendo aquela figura misteriosa, foi-se aos poucos aglutinando em torno dela. O estranho visitante dirigiu-se até uma velha mangueira, que na realidade funcionava coma praça de um povoado, assentou-se e pediu água para beber. Depois de algum tempo, já cercado de muita gente, assim começou a falar:

Meu nome é Ambrósio, eu sou padre, Frei Fanciscano.  Anos atrás fui acometido de uma febre horrível, acho que era paludismo ou febre tifoide. Essa doença me deixou completamente cego por mais de três anos. Um dia apareceu-me num sonho Santa Luzia dizendo-me que num povoado situado às margens de um riacho que brota de dentro de uma vereda do Chapadão sem Fim estava precisando da minha ajuda.

Publicado originalmente em 06 de maio de 2017

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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