Benki Ashaninka: ‘É o índio da novela’?

Benki Ashaninka: ‘É o índio da novela’?

Por Jairo Lima

O Juruá alterna seus humores entre o calor escaldante e chuvas torrenciais, que alimentam a floresta garantindo-lhe a perenidade e riqueza que nos enche de vida e esperanças.

Nas últimas duas semanas venho participando do frenesi febril e dinâmico que tomou de assalto não só nossa região, mas, também, boa parte do mundo, pelo menos, de um grande número de pessoas ao redor deste.

Não me refiro ao funesto e revoltante assassinato da vereadora Marielle Franco, tombada na guerra sem sentido que assola a Cidade Maravilhosa, e que, com certeza, espelha o desarranjo e abandono que tomou conta de nossa Pindorama. Me refiro a outra situação que, se por um lado não teve o trágico desfecho, ao menos personifica a bagunça generalizada dos valores e virtudes de nossa sociedade: o processo criminal contra o Benki .

Exatamente no dia da comoção pela morte da vereadora veio a público a campanha em apoio ao Benki, e, na avalanche de contatos e mensagens que recebi duas frases me chamaram bastante a atenção. Uma proferida pelo jornalista Felipe Martinez, da Carta Capital, e outra lida ou ouvida em diversos comentários espalhados pelas redes zapianas e ‘facebookquianas’.

A frase do Felipe, carregada de simplicidade e verdade resume bem a situação vivida no Brasil. Ao me perguntar a origem de todo o imbróglio que envolve o Benki, que, grosso modo se resume em uma ‘denúncia falsa de ameaça de morte’, aquele me disse: Jairo, não existe falsa ameaça de morte dita por pessoas com a história como a do Benki e da Marielle. Perfeito! Isso mesmo!

A outra frase, igualmente simples e, tal como a outra, carregada de significados é a surpresa e questionamento das pessoas, principalmente aqui no Acre, quando tomaram conhecimento da situação: …esse aí é o índio da novela?

Duas frases que em sua sentença são únicas mas que carregam uma essência cheia de significâncias.

Não vou aqui falar a história do Benki. Não preciso e este espaço de não daria conta, se querem um resumo consultem  wikipédia, ou deem um click no Google, e irão se impressionar com o tanto de citações. Seria longo demais. Mas, a partir da frase do Felipe chamo todos para reflexão a partir de uma pergunta: Uma pessoa que já sofreu mais de cinco atentados (um deles um ataque direto com um machado no centro da cidade), e já recebeu várias ameaças de mortes comprovadas e, ainda por cima, considerado pela ONU como uma das lideranças mundiais sob risco de morte, faria uma denúncia falsa de algo tão grave? – Creio que não é preciso mais que uns dois segundos para saber a resposta: NÃO!

Para quem não tem ideia, e acredito que poucos tenham, do que é ser ativista ambiental e, ao mesmo tempo, pertencente a um povo indígena na cidade fronteiriça entre Brasil e Peru, onde Benki mora, vos digo: É preciso muita coragem e um bom bocado de sangue frio pra continuar atuando e mantendo seus princípios. Já estive várias vezes lá. Trabalho com isso e já vivenciei coisas de arrepiar os cabelos.

Marechal Thaumaturgo é uma cidade linda, rodeada de rios e florestas, mas que é palco de dramas e lutas que já levaram à morte muitas pessoas. Como exemplo cito o assassinato brutal, covarde e sem sentido de quatro lideranças Ashaninka em 2014 quando se dirigiam para a aldeia Apiwtxa, lar do Benki, para uma reunião (clique aqui). Sinistro que acompanhei ativamente como membro da equipe de investigação.

Benki Jairo 1

Mas voltemos ao processo.

Benki está sendo julgado por ter, segundo a denúncia, feito uma falsa alegação de que estava sendo ameaçado de morte. Interessante é que, nesse caso em particular, ele, em nenhum momento, afirmou que ‘fulano ou ciclano’ o ameaçaram. Até mesmo testemunhas afirmaram não ter visto tal afirmação. Claro que, conhecendo o contexto das lutas e da dinâmica perigosa das relações locais, uma denúncia dessas não poderia ser descartada. Pois bem. O então, transformou-o em réu. O mesmo Estado que o reconhece como uma das personalidades que mais atuam em prol da natureza.

– Mas a lei é uma só. É para todos! – Pode-se argumentar. Concordo, mas não vem ao caso, pois a lei é para todos, mas como as autoridades a interpretam é que são elas… afinal, o contexto em que estas são interpretadas fazem toda a diferença.

É muito doido que o cara receba um prêmio da ONU, o terceiro em sua trajetória e, logo em seguida, é tratado como um meliante que gastou o tempo e os recursos do Estado para atender uma falsa denúncia. E mais doido ainda que meio mundo se desloque para visitá-lo (entre estes embaixadores e ministros) e, por conseguinte, sua aldeia e seus projetos como a Yorenka Ãtame e, em sua própria região este seja alocado entre os que não tem o que fazer além de ‘enganar a ‘. Aff… como bem diz minha querida mamãe: Me poupem… Me economizem…

O processo ao qual este está arrolado é tão sui generis e complexo que não cabe aqui a explicação (coisa que dei aos montes nesta semana, em três línguas diferentes), mas que, em essência, assombra pela falta de atenção a todo o contexto da coisa.

Tão logo tomou-se conhecimento do que estava se avizinhando – uma possível condenação que poderia render prisão de dois  a oito anos – um grupo de amigos se engajou em dar notícias ao mundo sobre isso. E a coisa cresceu… ontem mesmo assisti a um programa nos Estados Unidos, de um tatuador famoso por lá, o Chris Nunez, de um programa chamado Ink Master, que, numa transmissão ao vivo relatou seu conhecimento sobre o Benki e o processo contra o mesmo. Mobilização continuada em sua rede social que chegou a registrar 58.000 participações, só nos EUA.

Nesta mesma semana, um sem-número de jornalistas e conhecidos pelo mundo todo entupiram meu estropiado zap e de outros colegas, como o txai Macêdo, com perguntas e pedidos de informações. Juro que não tinha ideia ser possível um simplesmente parar de funcionar por causa de tanta ‘movimentação’ virtual. Pois é… o meu parou.

Revistas como a Carta Capital e até mesmo a conhecida Der Spiegel alemã estão se mobilizando para postar artigos sobre o assunto. Colegas jornalistas como a Maria Fernanda, que entre outras mídias escreve para o Estadão, a Elaíze Farias da Amazônia Real, Zezé Weiss da Revista Xapuri, e tantos outros estão também escrevendo e publicando suas percepções.

Mal a campanha começou nas redes sociais e a coisa balançou os meios de comunicação e o próprio Acre.

Benki Jairo 2

Mas…

Nesse momento que acrescento a outra frase no tempero deste meu texto: …esse aí é o índio da novela? – Essa singular missiva, logicamente oriunda desse nosso rincão acreano simboliza muito e reflete na própria natureza da condução desse processo criminal todo, pois, fazendo jus ao adágio popular que nos ensinou que ‘ninguém é profeta em sua própria ‘, nem uma notinha saiu na imprensa local. Também não houve comoção na região por causa dessa situação, afinal, todas as torcidas e atenções, em grande parte, estão direcionadas para outros focos, entre estes para a ‘representante dos acreanos’ que participa do BBB, e que, um comentário sobre o sistema caótico do transporte público da cidade de Rio Branco causou bate-boca na assembléia. Entendo… não dá para competir né?

Pareço estar irritado com essa situação, não parece? Errado, caros leitores. Não estou irritado não. Estou perplexamente indignado. Mas tudo bem, consigo controlar tal ânimo, e preciso, devido a toda a situação e minha própria participação na coisa toda.

Da visita do na aldeia Apiwtxa, quando este conheceu o Benki e sobre este escreveu uma linda canção, até o momento presente muita coisa mudou no mundo, mas, pouco se avançou no básico: valor, reconhecimento e proteção a quem realmente faz a diferença.

Benki é meu amigo. Amigo de verdade o qual tenho uma longa convivência e admiração por todo o seu trabalho. Já disse pra ele mais de uma vez: Sherepiary, vai embora cara. Você não precisa disso. Você pode construir uma carreira em seus projetos em locais mais calmos e que lhe reconheçam o esforço. – Mas ele é teimoso mesmo, e, lembro que numa dessa minhas exortações feitas há um tempo quando nos encontramos ele respondeu: – Vou não. Minha história e minha vida estão nessa minha missão. Na minha terra eu repasso minha mensagem, planto minhas árvores, faço minhas rezas e tento ajudar e curar as pessoas. Lá é meu lugar, lá ficarei e se preciso lá morrerei.

O que posso dizer é que a luta continua para reverter essa injustiça. Uma entre tantas que vem assolando a dignidade e a paz nesse país. Pawa* há de afastar essa nuvem negra para longe, abrindo o céu em estrelas e paz.

Pois é, meu querido amigo… pois é…Por fim digo: não é o índio da novela não! Se liguem, acreanos. Benki é bem maior que isso, e se não o enxergam é porque precisam abrir mais os olhos e entender que, como ele mesmo me disse uma vez, após uma noitada linda de kamarãpy: O paraíso é aqui, sabe Jairo. O povo dessa terra aqui que vivemos, essa terra que chamam de Acre, precisa descobrir que estão cercados de vida, que é essa natureza linda, com suas matas, rios e espíritos de luz. Olham para ‘lá fora’ achando que a vida é melhor lá. Mas eles vão acordar, um dia vão acordar. Por isso que trabalho tanto, para que quando acordarem todas estas belezas ainda estejam ainda do mesmo jeito.

Benki Jairo 3

Jairo Lima  (na foto acima com Benki Ashankinka) é indigenista, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua há mais de vinte anos junto aos povos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre. 

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Imagens utilizadas: Imagem 1 – Alessandra Melo; Imagem 2 – Propaganda; Imagem 3 – Jairo Lima.

 

Jairo Xapuri

 

 

NOTAS DO AUTOR:

Publico hoje este texto, ao invés de o fazê-lo na segunda, devido a urgência de todo este movimento.

*Pawa – é como os Ashaninka designam a Força Maior da Natureza, que nós chamamos Deus.

** Kamarãpy – Como os Ashaninka designam a Ayahuasca.

 

 

 

 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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