O HOMEM QUE VIRAVA ONÇA

O homem quem virava onça

Na comunidade Kalunga contam que havia um homem que de noite virava onça…

Por Glória Moura

Uma vez, era uma noite de lua cheia, ele virou onça e matou uma novilha na fazenda do próprio filho. Quando viu a novilha morta, o filho pensou:– Isso é coisa de onça. Vou ficar aqui de tocaia para pegar essa onça.

Ele passou o dia e a noite esperando a onça aparecer novamente. De repente, ouviu um barulho de mato amassado.

Era a onça que vinha devagarinho. Ele se preparou, armou a espingarda, mas quando a onça
chegou perto ele percebeu que era seu pai e não atirou.

A onça fugiu espantada. Quando o filho chegou em casa, o pai já estava lá. Ele disse:

– Pai, o senhor tem de parar com essa estória de virar onça. Hoje eu quase atirei no senhor. Foi por pouco. Eu sou um bom caçador de onça e quase matei o senhor.

O senhor mata minhas novilhas quando está virado em onça e me dá prejuízo. Vamos numa rezadeira para o senhor ficar livre desse encanto. Assim fizeram. A rezadeira quebrou o encanto, e o pai nunca mais virou onça.

Glória Moura – Pesquisadora. Estória narrada por Joaquim de S. R., da Comunidade Kalunga/GO, e registrada pela pesquisadora Glória Moura em Estórias , MEC, ano 2000.

O HOMEM QUE VIRAVA ONÇA
Foto Ilustrativa – Reprodução/Facebook

Quilombo Kalunga mantém nativos 83% do Cerrado

Enquanto o Brasil tem apenas 48% do bioma Cerrado ainda nativo e Goiás apenas 30%, o território do Quilombo Kalunga, que fica no nordeste goiano, na região da Chapada dos Veadeiros, mantém 83% da área com a vegetação intocada.

Por Lucas Pordeus León – Enviado Especial  (a convite do IPAM) – Cavalcante (GO)

Coletados por imagens de satélites, os dados foram sistematizados pelo MapBiomas, rede colaborativa formada por organizações não governamentais (ONGs), universidades e empresas de tecnologia.ebcebc
Exemplo de preservação, o modo de vida do povo kalunga e o reconhecimento da propriedade coletiva de parte da pelo explicam a elevada proteção ao bioma na região.
O kalunga Sirilo dos Santos Rosa, de 69 anos, considerado uma liderança anciã pela comunidade, explicou que a preservação do Cerrado é uma condição necessária para o modo de vida do quilombo.
“Nós dependemos muito do Cerrado em pé, do Cerrado vivo. Ele protege a água, tem as frutas que são fonte de para sociedade. Assim, a gente não tem como não preservar o Cerrado. Esse é um que nossos antepassados deixaram pra nós e nós queremos deixar para as futuras gerações”, afirmou.
Sirilo acrescentou que cerca de 15% do território tem sido usado para fazer a roça com plantações de arroz, feijão, mandioca, legumes e verduras que ajudam a alimentar as cerca de 3.500 pessoas que vivem em 39 comunidades espalhadas pelo território que ocupa 261 mil hectares.
“A gente faz nossas roças, mas não prejudica a natureza em volta. A gente sempre deixa uma parte de reserva. Além disso, depois de dois ou três anos fazendo a roça a gente muda o local da plantação e a mata volta a se recuperar de novo depois de sete ou oito anos. Quanto mais rápido a roça é abandonada, mais rápido a vegetação do Cerrado volta”, disse Sirilo.
Segundo os dados do MapBiomas, dos 16% do território com uso antrópico, ou seja, usado pelos humanos, 12% é de pastagem, sendo 4% com usos diversos. Ainda segundo o levantamento, em 1985, apenas 10% do território Kalunga era usado pelos humanos, sendo 90% ocupado por Cerrado nativo.  

Cerrado e economia  

O Cerrado vivo e em pé é uma condição necessária para a economia do povo kalunga, destacou Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa de Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, do População e Natureza (ISPN). O ISPN trabalha com comunidades tradicionais há cerca de 30 anos. 

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Mapa mostrando o território Kalunga na Chapa dos Veadeiros – Preservação Kalunga MapBiomas/Divulgação

Segundo Isabel, o território Kalunga, assim como outras terras ocupadas por e comunidades tradicionais, tem uma lógica de uso da terra “que inclui a vegetação nativa nas atividades econômicas.

Elas utilizam o Cerrado em pé e a vegetação nativa conservada para extrair remédios diversos, , madeira e fibras. São produtos que fazem parte da economia dessas comunidades e, portanto, é interessante para elas manter o Cerrado em pé”.  

Reconhecimento do Estado  

Além disso, outro fator que ajuda a explicar a preservação do bioma ao longo das últimas décadas nessa região é o reconhecimento, feito pelo Estado, de que aquele território é de propriedade coletiva do Quilombo Kalunga.
Em 1991, a Lei Estadual nº 11.409 qualificou a comunidade como Sítio Histórico e em Goiás. Em 2004, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) iniciou o processo de titulação das terras. Em 2010, o quilombo foi declarado como área de interesse pela Presidência da República, sendo iniciados os processos de desapropriações dos imóveis rurais privados.
Em 2014, o Incra titulou 31 mil hectares do território tradicional. Em 2023, acordo firmado pela Advocacia-Geral da União garantiu posse de outra área da terra da comunidade.
Esse processo de reconhecimento do quilombo pelo Estado é apontado como fator importante para reduzir o assédio de invasores dentro do território, como grileiros e fazendeiros, o que contribui para preservação do Cerrado na região.  

Exemplo internacional  

Em fevereiro de 2021, o Território Kalunga foi o primeiro do Brasil a ser reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais (TICCA).
O título global é concedido às comunidades que “têm profunda conexão com o lugar que habitam, processos internos de gestão e governança e resultados positivos na da natureza”.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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