Uma tempestade chamada Pagu
Pagu já foi quase palavrão, sinônimo de confusão, antônimo de moça direita. Considerada por muitos como louca e devassa, o fato é que ela fez e viveu diferente das outras, desde o começo. Morreu cedo, aos 52 anos, mas o que aconteceu nesse tempo foi tudo intenso e precoce. “Ela sempre foi vista como muito louca, e é essa Pagu que precisa ser desmistificada”, afirma a pesquisadora Lucia Maria Teixeira, autora de Pagu – Livre na Imaginação, no Espaço e no Tempo.
Por AH/Aventuras na História
Pagu já foi quase palavrão, sinônimo de confusão, antônimo de moça direita. Considerada por muitos como louca e devassa, o fato é que ela fez e viveu diferente das outras, desde o começo. Morreu cedo, aos 52 anos, mas o que aconteceu nesse tempo foi tudo intenso e precoce. “Ela sempre foi vista como muito louca, e é essa Pagu que precisa ser desmistificada”, afirma a pesquisadora Lucia Maria Teixeira, autora de Pagu – Livre na Imaginação, no Espaço e no Tempo.
Jornalista, militante política, escritora, tradutora, desenhista e diretora de teatro, Patrícia Rehder Galvão nasceu em uma família de classe média alta de São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 1910. Mudou-se para a capital aos 2 anos. Morou na Liberdade, Brás, Aclimação, Bela Vista e em uma chácara no então município de Santo Amaro. Aquela São Paulo pulsante do começo do século 20 foi o cenário perfeito para as estripulias de quem se autodeclarava uma “moleca impossível”.
“Ela procurava pessoas e causas autênticas”, afirma o professor K. David Jackson, da Universidade de Yale, especialista em literatura de língua portuguesa no prefácio do livro Paixão Pagu – A Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão. O livro foi escrito por Pagu originalmente como uma longa carta aos seus filhos em 1940, quando, com apenas 30 anos, acabara de sair de sua 23ª passagem pela prisão.
Ainda na escola, ainda Patrícia – Zazá para a família e Patsy no jornal -, conhece o poeta Raul Bopp, que a enturma com os modernistas, especialmente com o então casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Eles se encantam com a colegial de batom escuro e atitude desbocada. Aos 19, começa a colaborar com a revista Antropofagia, fundada por eles, que publica seus desenhos.
“Fazia as vezes de mascote do modernismo paulista e de `boneca” do casal Tarsila e Oswald de Andrade”, afirma a antropóloga Heloisa Pontes, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp – núcleo que leva o nome de Pagu, aliás – no artigo Vida e Obra de uma Menina Nada Comportada.
O apelido Pagu também foi ideia de Bopp, segundo o escritor e biógrafo Augusto de Campos, autor de Pagu, Vida e Obra. À época, o poeta sugeriu que ela usasse um nome literário com as primeiras sílabas de seu nome e sobrenome. Mas houve um engano: ele pensou que o sobrenome fosse Goulart. Já era tarde: o poema O Coco de Pagu já estava pronto. “Pagu tem os olhos moles / uns olhos de fazer doer”, são os primeiros versos da homenagem à menina, rebatizada assim por ele.
A “boneca” acabaria por trair a dona.
A mudança de opinião veio após uns dias com o líder comunista Luís Carlos Prestes. O encontro aconteceu em 1931, em Montevidéu, no Uruguai, e a ligação com o Partido Comunista (PCB) durou sete anos. “A pureza do caminho de Patrícia logo se mostrou incompatível com a ação partidária que escolhera”, explica Jackson, em Paixão Pagu. “Ia acabar sendo expulsa em 1938, mas não antes de tentar provar a sua proletarização, inclusive com o romance Parque Industrial, de 1933. Ninguém ainda havia feito literatura nesse gênero.” A obra é considerada um dos pontos altos da trajetória de Pagu e, por exigência do Partido Comunista, saiu sob o pseudônimo de Mara Lobo.
O pseudônimo se juntou a muitos outros, como Pat, Pt, Ariel, Gim, Solange Sohl etc. Como King Shelter, escreveu histórias policiais para a revista Detetive, do dramaturgo Nelson Rodrigues, identidade descoberta apenas 36 anos depois de sua morte. Traduziu Franz Kafka e Eugène Ionesco quando ninguém ainda os conhecia por aqui.
Por conta do incidente, o próprio Partido Comunista, receoso de ser responsabilizado, chamou-a de “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”. Filiada ao PCB, tanto ela como Oswald eram malvistos pelos militantes do partido. Em março do mesmo ano, lançaram o tabloide O Homem do Povo, pasquim político que circulou por apenas dois meses. A polícia o proibiu.
Depois da prisão e da publicação de Parque industrial, Patrícia vai embora para dar uma volta ao mundo, enviando, como correspondente, reportagens para jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo, como Correio da Manhã, Diário de Notícias e A Noite. Seu primeiro filho, Rudá de Andrade, fica aos cuidados do pai.
Pagu não parava. Após a aventura oriental, entrou na Europa de trem pela Transiberiana, passou por Moscou e chegou a Paris. Na França, passou a frequentar alguns cursos na Sorbonne e filiou-se ao Partido Comunista Francês. Foi pega pela polícia com documentos falsos, o que lhe garantiu mais uma prisão. Acabou liberada após a intervenção do embaixador brasileiro Souza Dantas junto ao governo francês.
Mas o cerco do governo Vargas aos comunistas estava mais apertado do que nunca. Na primeira metade da década de 1930 o cenário político brasileiro é balançado por dois extremos opostos, a Ação Integralista, de inspiração nazifascista, e o Partido Comunista.
Enquanto isso, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), agrupando, numa “frente única”, elementos de esquerda, sindicatos e alguns tenentes, expandia-se sob a presidência geral de Luís Carlos Prestes. Ao radicalizar suas propostas, a ANL foi fechada pelo governo, fragmentando-se. Os comunistas, em resposta, optaram pela insurreição armada.
Otimista, Prestes esperava que a revolta militar despertasse uma adesão massiva. Mas veio o fracasso do levante, em 1935, e todos os suspeitos foram caçados, presos, torturados e alguns, eliminados. Pagu está entre eles, e vai de novo para a cadeia. Desta vez, por dois períodos praticamente sem intervalo, que dariam um total de cinco anos.
Em muitas ocasiões, esteve sob tortura. “Passavam-se as horas e os dias e as semanas e o sangue escorrendo e os verdugos se revezando para me vencerem ou me enlouquecerem. Descansava no hospital e voltava para a tortura”, conta a própria Pagu em texto reproduzido por Augusto de Campos. “Agildo Barata, o chefe dos verdugos, pregava então os pregos na minha cabeça.” Em entrevista ao escritor, sua irmã Sidéria Galvão confirma: “No Rio, foi torturada, sim, inclusive aquela tortura estúpida, de unha e tudo, ela apanhou bastante no Rio, sim. Ficou muito doente”. Ao pai, Pagu escreveu da prisão: “Continuo ainda um pouco esmagada, mas vai se vencendo corajosamente”.
Presse no Brasil por dez anos.
Assim como recuperou a saúde, os ideais políticos também voltam para sua vida, agora pelo viés de um socialismo bem mais brando.
Entra para o pequeno Partido Socialista e se candidata, sem sucesso, a deputada estadual em 1950. Na campanha, publica o panfleto Verdade e Liberdade, expondo os motivos que a levaram a romper com o Partido Comunista. “Então, quando recuperei a liberdade, o Partido me condenou: fizeram-me assinar um documento no qual se eximia de toda a responsabilidade. Aquilo tudo, o conflito e o sangue derramado, fora obra de uma `provocadora”, de uma `agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”. Assinei.”
Trinta anos depois da aventura ao redor do mundo, é hora de voltar a Paris. Desta vez, porém, para uma cirurgia que poderia curá-la de um câncer. Sem resultado. Ela tenta o suicídio novamente e volta ao Brasil. “Quando eu morrer, não quero que chorem a minha morte. Deixarei o meu corpo pra vocês”, diz em uma de suas charges, da personagem Kabeluda. Seu corpo foi deixado há 55 anos, em 12 de dezembro de 1962.