A Piranha
Quem me sabe morando na floresta amazônica, a primeira coisa que me pergunta é se não tenho medo de piranha, se piranha não ataca a gente
Por Thiago de Mello
Respondo, sem faltar com a verdade, que gosto muito de piranha na brasa e tanta vez já nadei em água de piranha.
Mas o caboclo está cansado de saber que, em tempo de piracema para a desova, ela não gosta de que a gente se intrometa no caminho dela e dá mordidas, de leve: mas uma só, na qual se esbarra nadando.
Principalmente sabe que o cheiro de sangue atrai as bichinhas: animal ferido corre não o risco, mas a sina de ser devorado a dentadas por centenas de piranhas.
Daí a expressão boi de piranha: quando o rebanho vai atravessar o igarapé a nado, o dono sangra um boi, que é lançado na água antes de todos. As piranhas, endoidecidas pelo sangue, tomam conta do pobre, enquanto o resto do gado atravessa sem perigo.
Thiago de Mello – Poeta. Escritor, em “Amazonas: águas, pássaros, seres e milagres”, Editora Salamandra, 1998.
Thiago de Mello
Amadeu Thiago de Mello (Barreirinha, Amazonas, 1926 – Manaus, Amazonas, 2022). Poeta, tradutor, editor, ativista ambiental.
Sua produção lírica se situa na terceira fase do modernismo, com recursos da literatura clássica, como o rigor no uso da métrica, mesclados a um forte componente de crítica social.
Os valores éticos de liberdade e direitos humanos presentes em sua produção literária convivem com a defesa do meio ambiente e das populações tradicionais brasileiras.
Depois da formação escolar, o poeta se muda para o Rio de Janeiro, onde ingressa na faculdade de medicina. Abandona o curso, mas permanece no estado fluminense, onde cria a Edições Hipocampo, junto com Geir Campos (1924-1999).
A pequena editora é responsável pela publicação, em 1951, do livro de estreia de Mello: Silêncio e palavra. O livro de poemas é aclamado pela crítica, recebendo elogios do influente crítico Álvaro Lins (1912-1970), que defende Mello como um dos principais poetas contemporâneos.
Lins ressalta a presença de recursos formais como a firmeza da estrutura sintática e a ciência lexical de Mello. Em seus poemas, o universalismo de temas como a morte, o amor e a linguagem coexistem na tensão com questões de identidade nacional ainda embrionárias.
Entre 1953 e 1955, Mello segue em seus trabalhos editoriais, enquanto assina uma coluna no jornal O Globo e publica suas crônicas.
Em 1958, inicia sua carreira diplomática, ocupando o cargo de adido cultural na embaixada do Brasil na Bolívia e, no ano seguinte, na embaixada do Brasil no Chile. Suas atribuições incluem a promoção de intercâmbios culturais entre artistas brasileiros e de outros países da América Latina.
Em sua atividade diplomática, aproxima-se de autores como o poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973). Além da amizade, a relação entre eles se desdobra em parcerias editoriais. Mello traduz para o português poemas de Neruda, reunidos na obra Antologia Poética, publicada em 1964.
Neruda também traduz algumas das principais obras de Mello para o espanhol. Em 1964, Mello renuncia ao cargo diplomático no Chile em consequência de sua discordância com a ditadura instaurada pelo golpe militar brasileiro de 1964.
Ao voltar para o Brasil em 1965, publica seu livro de poemas de maior repercussão: Faz escuro mas eu canto.
A obra marca uma mudança de tom na poesia do autor, que assume uma postura de testemunho mais abertamente político, remetendo a fatos históricos e acontecimentos pessoais.
A temática dominante dos poemas do livro passa pelo compromisso com a liberdade, a democracia e os direitos humanos.
É parte deste livro seu poema mais famoso, publicado originalmente no jornal Correio da Manhã e abertamente crítico ao regime ditatorial brasileiro, intitulado “Os estatutos do homem (Ato Institucional Permanente)”.
O poema traz uma proposta utópica de convivência e harmonia, enquanto oferece uma crítica severa à ditadura brasileira, explícita na paródia dos Atos Institucionais que regem o regime.
Ainda em 1965, Mello é preso por quase um mês no Rio de Janeiro junto a outros intelectuais e artistas, em uma manifestação contra o governo. Na cela do quartel do Exército, escreve o poema “Iniciação do prisioneiro”, publicado em A canção do amor armado, de 1966.
Com o recrudescimento da ditadura em 1968, Mello é forçado a sair do Brasil. O poeta é recebido como exilado político no Chile, onde trabalha como diretor do departamento de comunicação do Instituto de Reforma Agrária de Salvador Allende (1908-1973).
Com o golpe no Chile, em 1973, é forçado a fugir novamente, sendo recebido brevemente na Argentina, depois na Alemanha, onde vai trabalhar na Universidade Johann Gutenberg. Antes de voltar ao Brasil, passa ainda pela França e Portugal.
No exílio, segue com suas atividades de poeta, tradutor, editor e jornalista. Em 1977, decide voltar ao Brasil, mesmo sabendo que seria preso na chegada. Ele é detido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde passa alguns dias antes de ser liberado.
Mello volta a viver na Amazônia, onde sua vida e sua obra literária se voltam para a defesa da vida e da cultura da floresta.
O livro Amazonas, pátria da água (1987), publicado em edição bilíngue em 1990, por exemplo, é um manifesto em defesa da natureza e do planeta que celebra a natureza e a cultura dos povos da Amazônia em suas lendas, mitos, sabedorias, além de abordar as crises sociais e ambientais.
A poesia de Thiago de Mello apresenta diferentes facetas, passando por temáticas mais universais da condição humana, conflitos existenciais e metafísicos.
Sua linguagem é direta e simples, embora haja uma preocupação formal evidenciada pelo rigor da métrica e pela recorrência de esquemas de rimas. Sua produção mais aclamada se constitui de poemas de cunho social, permeados de denúncias, mas também repletos de esperança.
Para Mello, o ofício literário é uma forma de atuação política em defesa dos direitos humanos e da natureza, com atenção especial à floresta amazônica.
Fonte:Itaú Cultural