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O massacre de Soledad Barrett

O massacre de Soledad Barrett

O massacre de Soledad Barrett  – Em 8 de janeiro de 1973, em Pernambuco houve o massacre contra a militância socialista de Soledad Barrett, Pauline Reichstul, Eudaldo Gómez da Silva, Jarbas Pereira Márquez, José Manoel da Silva e Evaldo Luiz Ferreira

Por Urariano Mota

Sobre Soledad Barrett escrevi o livro “Soledad no Recife”, do qual retiro o trecho a seguir, uma recriação da sua memória.

“Escuto a canção, que me persegue nesses dias desde 1972: ‘mamãe, mamãe não chore, eu fui embora…’.

E Daniel, o cabo Anselmo revelado depois, fala no açoite vigoroso de palavras:

  • Os guerrilheiros treinados em Cuba somam, camarada. Eles se põem à disposição do Brasil.
  • Sim, mas onde estão os guerrilheiros? Onde? Meu amigo pergunta.

A isso Daniel/Anselmo não responde em palavras. Olha para Soledad e Pauline e sorri. Mais que sorri, pisca-lhes um olho, que é, para nós, os nomes do contato, uma solene e indubitável declaração. ‘Os guerrilheiros estão aqui, companheiros. E que guerrilheiros, hem? Que me dizem?’. Esse homem é um mercador, é um árabe de propostas no deserto, me parece na hora. Mas ele fala de tesouros mais preciosos, porque olha para elas e nos oferece a !!! Na época, mais me parecia um fatorial de possibilidades, a quem deveríamos pôr uma chuva de exclamações. Então meu amigo lhe responde:

  • Muito bem. Mas concretamente: que propostas devemos levar para a direção?
  • Ora, trazemos armas. Temos fuzis soviéticos, pistolas… Nada exigimos em troca. Isso é uma recomendação do Comandante. Em nome da solidariedade dos povos. Os princípios são táticos e estratégicos, agora. Entende?
  • Sim, mas estratégicos…
  • Um, dois, três vietnans, companheiro.

Então Soledad fala. Então Pauline intervém a partir da fala da formosa menina. Digo menina por afeição irresistível. ‘Mamãe, mamãe, não chore, eu nunca mais vou voltar por aí…’.

Menina velhinha, corrijo. Ela é melhor mais velha que eu, que nós, mas ela nestes anos de carência, além de pertencer a um gênero, ao gênero geral das fêmeas, do reino inacessível então, ela é uma pessoa, uma individualidade de pele fresca, de lábios róseos, roxos, uma pessoa de perturbação dos sentidos.

Eu não tinha gravador nesses dias, e se tivesse um, jamais o teria usado, porque sua fita seria incriminadora e poderia nos matar, ao fim de cruel sofrimento. Eu não possuía câmera de filmar, e pela mesma razão, se a tivesse, não a usaria. Mas me valho do que sobreviveu àquele 1972. Valho-me do que a memória comanda e ordena.

  • Os guerrilheiros formados em Cuba são patriotas de todos os povos. A solidariedade não tem fronteiras. Tem classes. Devemos semear onde justiça não há.
  • Como Dom Quixote – falo, escapou-me, sem que eu tivesse de conter. Daniel/Anselmo abriu um largo sorriso. Sol me olha divertida, sem raiva.
  • Sim, companheiro, como Dom Quixote. Pero só um pouquito. Nós estamos na contracorrente, companheiro. Isso nos deixa com aparência de quixotescos. Mas somos muitos, muitos quixotes, em todo o continente.
  • E com armas – intervém Pauline. – Nossas armas têm pólvora, concreta. O que é muito diferente de um velho Rocinante.
  • A nossa teoria – volta Soledad – a teoria revolucionária é uma bomba de efeito maior que a de Hiroxima. Percebes?

Percebo somente agora, muitos anos depois. Me vem mesmo uma necessidade de chorar, que antes eu não tinha. Os crentes, os primeiros cristãos, não teriam mais fé que você, quando falava que a teoria revolucionária era uma bomba maior que a de Hiroxima. Quanta crença no ardor, que certeza louca e invencível na palavra escrita! Então me vem uma necessidade de chorar, que antes eu não tinha. Talvez fôssemos sufocadas cujas lágrimas não rebentavam. O nosso choro então era um soluço. Seco. Era uma dor de passagem, porque logo, logo o futuro estava adiante. A dor era só um intervalo, enquanto a felicidade não vinha. Lembro que ao te escutar, Soledad, os meus olhos marejavam, marejam. Havia uma comunhão de êxtase que só a e os transportes místicos conseguem. Um gozo, um prazer mais alto, um orgasmo sublimado. Por isso que a tua memória, por entre todas as infâmias daquelas horas, e a tua presença nesta noite, na Ladeira do Bonfim, me dizem que sou um homem feliz. Sou feliz e não percebo, sou feliz e disso não tenho consciência, porque me embriago quando declamas, recitas e cantas, segura do efeito do que procuras e prometes:

  • A nossa teoria é uma bomba maior que Hiroxima.

Adivinhas o teu látego sobre mim? Furto-me e sumo daqui, como um fantasma agora, muitos anos depois. Desapareço.]

  • Sei, entendo – respondo. – A poesia é maior que a fissão nuclear.

Pelos cantos dos olhos noto que Daniel, o infame cabo Anselmo, sorri. Diria mesmo, há movimentos em seu diafragma, como se abafasse uma gargalhada.

  • Sim, mas eu me refiro à teoria revolucionária, companheiro – Soledad repõe. – Eu me refiro ao pensamento de Marx, entendes? Percebes?
  • Sim, percebo.

Chamado à ordem pelo nome do papa da nossa ideologia, eu, cristão-novo confesso, percebo, entendo e me calo. O que posso dizer do homem cujos livros sacodem o jugo da humilhação? Isso também é poesia, tenho vontade de lhe dizer. Mas me calo, porque não sou um homem livre. Nem mesmo tenho a graça da liberdade mais simples, para lhe cantar, ‘Sol, vamos fazer amor no jasmineiro?’”.

E fico agora sem palavras para concluir a memória do livro.

Soledad Barret Viedma (Laureles, 6 de janeiro de 1945 — Paulista, 8 de janeiro de 1973)

Foi uma guerrilheira e militante comunista paraguaia, de ascendência espanhola e judaica, integrante da organização de extrema esquerda Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que lutava contra a ditadura militar brasileira. Foi traída pelo companheiro e assassinada pelas forças de segurança do regime em 1973, aos 28 anos e grá de quatro meses, ao lado de outros quatro companheiros, no episódio conhecido como Massacre da Chácara São Bento, em Pernambuco. É um dos casos investigados pela Comissão da Verdade, que apura e desaparecimentos na ditadura militar brasileira.

Fonte: Brasil 247 com edicão da Xapuri.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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