A ciança, faminta, sobreviveu. O fotógrafo, não
Kevin Carter, um premiado fotojornalista sul-africano, estava se preparando para fotografar uma criança faminta tentando chegar a um centro de alimentação da Organização das Nações Unidas (ONU), próximo à aldeia de Ayod, quando um abutre-de-capuz apareceu nas proximidades. A foto foi tirada no ano de 1993, no Sudão (numa área que hoje pertence ao Sudão do Sul). Na época, o país estava arrasado por uma longa guerra civil.
Em 1990, enquanto começava a transição do regime de apartheid para um governo democrático baseado no sufrágio universal, Kevin Carter, Ken Oosterbroek, Greg Marinovich e João Silva, além de outros fotojornalistas que assumiram o rótulo de Bang Bang Club, passaram a atuar nas áreas urbanas subdesenvolvidas e habitadas por não brancos, entre os quais negros, mulatos e indianos, todos da classe trabalhadora.
João Silva, um fotojornalista português que mora na África do Sul e que acompanhou Carter no Sudão, relatou que os oficiais da ONU lhe disseram que iriam parar por 30 minutos (o tempo necessário para distribuir alimentos), de modo que os dois aproveitaram para olhar ao redor e tirar fotos.
Homens e mulheres da aldeia saíam de suas cabanas e iam até o avião da ONU para receber as doações de alimentos. Neste curto período, as crianças muitas vezes ficavam sozinhas. Esta era a situação do menino registrado na foto de Carter. Um abutre então pousou atrás do garoto. Para ter os dois em foco, Carter se aproximou da cena muito lentamente para não assustar a ave e tirou uma foto a aproximadamente 10 metros de distância. Ele então tirou mais algumas fotos antes de espantar o pássaro.
Vendida para o The New York Times, a fotografia foi publicada pela primeira vez em 26 de março de 1993 e foi repassada para muitos outros jornais ao redor do mundo. Não demorou muito para que a horrenda imagem de um montante de similares, entre as quais algumas bem mais chocantes, fosse imortalizada na capa de 26 de março do New York Times como “o símbolo da fome e do horror em África”. Em 1994, a imagem ganhou o Prêmio Pulitzer de Fotografia Especial.
Carter foi muito criticado por não ajudar o menino. O jornal St. Petersburg Times, da Flórida, disse sobre Carter: “O homem ajustando suas lentes para capturar o enquadramento exato daquele sofrimento poderia muito bem ser um predador, um outro urubu na cena.”
Dois fotógrafos espanhóis que estavam na mesma área naquela época, José María Luis Arenzana e Luis Davilla, e que não conheciam a fotografia de Kevin Carter, também tiraram uma foto em situação similar. Mas Carter foi o único a ser massacrado pela opinião pública e a imprensa. Carter presenciou muita violência, principalmente entre as facções de grupos negros proibidos de atuar. Fotografou, inclusive, o conflito entre o Congresso Nacional Africano (ANC) e apoiantes do Partido da Liberdade Inkatha.
Em meio a tantas atrocidades, para minimizar a crise existencial que sempre angustiou sua alma, Carter que já vivia embriagado pela adrenalina liberada pelas situações de risco em que se colocava costumeiramente, ainda apelou para o álcool e, em seguida, para as drogas. Nesse ínterim, em março de 1993, já com sinais nítidos de depressão, ele partiu para o Sudão, país onde pretendia fazer uma fotorreportagem com as tropas rebeldes.
Porém, logo que o avião aterrissou, ele se deparou com centenas de famintos que buscavam um campo de alimentação da Organização das Nações Unidas (ONU), que ficava próximo à aldeia de Ayod (no atual Sudão do Sul). A visão aterrorizante se resumia a mortos-vivos que, quando ainda podiam, deixando para trás os filhos, tentavam correr em direção à aeronave em busca de alimentos.
Mesmo chocado com a situação, Carter fotografou alguns deles, mas deteve-se perto de uma criança desnutrida que aparentemente estava sozinha. Como que de repente atrás dela pousou um abutre. Pacientemente, ele esperou cerca de 20 minutos para a ave abrir as asas, mas como isso não aconteceu, ele se aproximou lentamente para não assustá-la e tirou várias fotos a 10 metros de distância para, então, espantar o pássaro.
Embora tenha cumprido a tarefa, enviou as imagens tardiamente e quando elas chegaram a Sygma não as publicou, por considerar que não tinham a qualidade desejável. A segunda oportunidade foi um serviço em Moçambique, onde, depois de passar seis dias, perdeu todos os rolos de filme no aeroporto local – e nunca mais os encontrou. Desde então, Carter começou a enfrentar vários problemas, inclusive financeiros, que não demoraram a se agravar, atordoando-o ainda mais.
Em consequência, ele começou a falar com insistência em suicídio, sobretudo, após a morte do seu melhor amigo, Ken Oosterbroek, que foi baleado por soldados da Força da Paz, no município de Thocoza, aproximadamente a 25 km a leste de Johanesburgo, em 18 de abril de 1994, nove dias antes das eleições na África do Sul.
Com as criticas, Carter entrou em depressão e, pouco mais de um ano depois da foto, dirigiu até o córrego Braamfontein Spruit, em Joanesburgo, e tirou a própria vida colocando uma das extremidades de uma mangueira no escapamento de sua caminhonete e a outra na janela do lado do passageiro. Ele morreu por intoxicação por monóxido de carbono, aos 33 anos de idade.
Entretanto, dizer que Kevin Carter se suicidou em consequência da imagem de um menino desnutrido espreitado por um abutre-de-capuz é minimizar demais a miséria humana e a própria história de vida de um fotojornalista que denunciou a fome na África. Aparentemente, ignorar a denúncia do sul-africano e mostrá-lo como um monstro insensível, era uma forma de isentar a sociedade branca da culpa pelo que acontecia aos negros na África do Sul.
Trechos da sua carta de suicídio mostram como ele se sentia: “Eu sinto muito. A dor da vida ultrapassa a alegria ao ponto em que a alegria não existe…. deprimido … Estou assombrado pelas vívidas memórias de mortes e cadáveres e raiva e dor … de crianças famintas ou feridas, de loucos com dedo no gatilho, muitas vezes policiais, carrascos assassinos … Fui juntar-me ao Ken (Ken Oosterbroek, seu colega fotógrafo que havia falecido há pouco tempo), se eu tiver tamanha sorte.”
O menino da foto era Kong Nyong, que estava sofrendo de má nutrição severa na época, mas já tinha começado a receber ajuda da ONU. Na foto, é possível ver a pulseira de identificação da entidade no braço da criança. E, ao contrário do que muitos pensavam, ele não morreu na época da foto. Segundo seu pai, Kong morreu adulto em 2006, devido a uma febre.
Fontes: Magnus Mundi/ leiturasdahistoria
