A ESQUERDA PERDEU ESPAÇO NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS? NA VERDADE, O ESPAÇO SEMPRE FOI RESTRITO
Para o Camarada Athos Pereira,
que já não pôde, ele mesmo,
fazer sua própria e melhor análise desta nossa conjuntura.
Por Trajano Jardim
Os resultados das eleições municipais para vereadores e prefeitos têm levado os chamados analistas da mídia convencional e os cientistas políticos a avaliações equivocadas sobre o desempenho dos setores de esquerda e progressista, concluindo que estes sofreram fragorosa derrota imposta pelos grupos conservadores e de ultradireita.
Não se pode fazer análise correta do nosso sistema político sem uma contextualização histórica da formação da sociedade brasileira a partir da sua gênese, oriunda do sistema patriarcal e escravocrata de suas raízes, em que a partilha territorial emerge a partir da primeira divisão territorial, logo após seu descobrimento, com a criação de 15 capitanias hereditárias.
Um caminho encontrado pela Coroa Portuguesa foi o de delegar a administração do vasto território de sua colônia a particulares. Esse sistema durou até meados do século 18, quando a hereditariedade foi extinta, porém assentou as raízes da propriedade privada da terra. Foi nesse período que surgiram os senhores de engenho, donos de grandes propriedades de terra, os latifúndios, que também são característicos desse tipo de produção, substituindo o sistema anterior e que impede, até hoje, uma reforma agrária, que outros países efetivaram.
Com o declínio da Monarquia e o começo da República Velha, o período Republicano, iniciado em 1889, foi marcado por uma crise econômica, pouca participação popular e insatisfação por parte da maioria dessa população, especialmente os mais pobres. O apoio à República veio pela maioria elitista, que via no novo governo um meio de recuperar parte das perdas que teve com a abolição da escravidão.
Nesse período, quanto às regras eleitorais, a Constituição determinou que o voto continuasse não secreto, embora fosse obrigatória a assinatura na cédula, o que ensejou a exclusão do direito ao voto aos analfabetos, aos cabos e soldados, aos religiosos sujeitos à obediência eclesiástica e aos mendigos, além das mulheres, que, apesar de serem maioria, há menos de um século, elas não podiam sequer votar. O direito de votarem e serem votadas só foi garantido em 1932, com o Código Eleitoral, assinado em 24 de fevereiro pelo então presidente Getúlio Vargas.
A Revolução getulista emerge da crise que se desenvolvia no seio da burguesia, ocasionada pela decadência do arranjo político que caracterizou o período da Primeira República e a corrida eleitoral de 1930. A supremacia excessiva paulista na economia e na política provoca a quebra do acordo “café com leite”, vigente entre as oligarquias paulistas e mineiras, e provoca a unidade das oligarquias de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e da Paraíba contra o governo vigente.
A Primeira República tornou-se República Velha a partir do momento em que o Exército e o Executivo passaram a ser coadjuvantes dos representantes das oligarquias, que predominaram nos regimes imperiais.
A Revolução de 1930 estabeleceu os rumos de industrialização no país, definiu direitos sociais aos trabalhadores e assentou as bases para a sua identidade como classe. Os trabalhadores, embora não fossem os protagonistas do Movimento, com as experiências de lutas acumuladas ao longo do período pré-revolucionário, influenciaram os jovens oficiais oriundos das jornadas da Coluna Prestes.
Assim, os militares, no seu ideário, contemplavam diversas bandeiras dos operários e levaram Getúlio Vargas a estabelecer normas que trouxeram benefícios sociais aos trabalhadores, embora a elite representante da burguesia industrial estivesse no comando das ações de diversos setores políticos do movimento. O Tenentismo preparou o caminho para a Revolução de 1930, que alterou definitivamente as estruturas de poder no país, embora o regime instalado não tenha eliminado totalmente a influência do sistema vigente na República Velha.
Nesse contexto, apesar do predomínio da oligarquia mineira-gaúcha no governo oriundo do movimento vitorioso, Getúlio conduziu a política trabalhista de forma a ter sob controle o movimento sindical. O governo criou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), instrumento que estabeleceu todos os direitos que os trabalhadores conquistaram ao longo do tempo. Instituiu a Justiça do Trabalho, a Carteira de Trabalho, firmou a política do salário-mínimo, o descanso semanal remunerado, a jornada de 8 horas semanais e a regulamentação do trabalho feminino e do trabalho de menores de idade.
No campo político, esse período foi de ferrenha repressão, em que os direitos humanos foram profundamente desrespeitados. Ao mesmo tempo, no campo social e no de proteção aos trabalhadores, a Era Vargas deixou um legado que nenhum governo pós-Estado Novo conseguiu suplantar ou desfazer, apesar de as elites patronais brasileiras e até mesmo de setores de Esquerda e liberal tentarem destruí-lo.
O programa de governo tinha como objetivo principal a industrialização do país. A eclosão da Segunda Guerra, em 1939, colaborou com o objetivo de Vargas e, assim, o Brasil pôde investir fortemente no desenvolvimento industrial.
Isso favoreceu o crescimento da classe trabalhadora que, mesmo com as condicionantes de controle da nova legislação do Estado Novo, o movimento operário buscou formas alternativas de organização para continuar a sua luta independente, o que levou, com o final da guerra, em 1945, à deposição do governo de Getúlio e à volta das oligarquias da Velha República ao poder.
As elites brasileiras jamais toleraram que o trabalhador brasileiro se organizasse como classe. A cada movimento dos trabalhadores, na busca de melhores condições de vida, a reação patronal e a do governo era de pronto e violenta. Refeito do impacto da morte de Vargas, a partir de 1955, o Brasil teve um surto de desenvolvimento, com a participação efetiva do capital estrangeiro. O ano de 1959 começou com um clima de forte agitação sindical.
Foram deflagradas cerca de 1.000 greves, que envolveram mais de 1.500.000 trabalhadores. Nesse ambiente de ebulição no Movimento Sindical, as discussões sobre temas políticos aumentavam.
O sentimento de unidade da Classe Operária foi o objetivo daquelas que transcorreram durante a luta dos trabalhadores por todo o período democrático, até 1981, na fase pós-ditadura militar de 1964, quando em definitivo o movimento operário brasileiro se fragmentou após a 1ª Conferência da Classe Trabalhadora – CONCLAT.
Mesmo diante da divisão, o movimento sindical manteve certa coesão até 1988, no período da Constituinte.
Durante a Constituinte de 1988, apesar da grande mobilização das entidades de trabalhadores e das correntes progressistas e democráticas, mais uma vez, os setores conservadores e reacionários, como havia ocorrido em outra ocasiões, rearticularam-se diante da perspectiva da construção de uma Carta Magna que correspondesse às propostas históricas das Reformas de Base levantadas até 1963 e foram sustadas por essas mesmas forças que se articularam com setores militares no golpe civil-militar de 1964 e haviam derrotado o movimento de massas pelas “Diretas já”.
Assim, o patronato urbano e o rural, articulados no famoso “Centrão”, na Constituição dita “Cidadã”, por Ulisses Guimarães, apesar de avanços conceituais nos direitos sociais, esse grupo foi cirúrgico nas comissões temáticas, no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores, não permitindo nenhuma decisão concreta nas questões da liberdade e da democracia sindical, jogando as decisões importantes para o Congresso, por meio de leis complementares. Sabiam eles que, historicamente, os setores conservadores, detentores do capital, sempre foram maioria nas resoluções políticas do país.
Em 27 de outubro de 2002, Luiz Inácio Lula da Silva foi, pela primeira vez, eleito Presidente da República Federativa do Brasil, com quase 53 milhões de votos. O candidato a vice-presidente na chapa vitoriosa foi o empresário e senador José Alencar, do PL de Minas Gerais. Uma tentativa de atrair os setores industriais e arrefecer a fúria do mercado que, em aliança com a mídia hegemônica conservadora, fazia campanha insidiosa contra o PT e os seus aliados, criando um ambiente de terror anticomunista na periferia e no seio da classe média.
Ao mesmo tempo, Lula publicou a “Carta aos brasileiros”, que foi lida no dia 22 de junho de 2002, durante encontro sobre o programa de governo do partido. O documento foi interpretado como importante marco de conciliação da campanha de Lula a presidente e entendida como uma indicação de capitulação ao setor econômico-financeiro.
O vice-presidente José Alencar tornou-se aliado fiel do governo e foi um combatente diário dos setores que tentavam, a todo custo, fazer valer na política econômica os interesses do mercado, criticando os altos juros praticados pelo Banco Central.
No final do primeiro mandato do presidente Lula, embora as ações sociais demonstrassem que o governo estava fazendo do Brasil um país menos desigual, as pressões continuaram. As crises políticas tiveram seu ápice em julho de 2005, quando denunciaram o esquema de compra de votos de deputados no Congresso e o financiamento de campanhas por “Caixa 2”. Conhecido como o “Escândalo do Mensalão”, que resultou na cassação do mandato de José Dirceu, em dezembro de 2005, detentor do principal posto de coordenação política do país naquele momento, sendo tratado pela imprensa como o verdadeiro homem forte da administração federal, a quem caberiam as decisões.
Mesmo com a campanha insidiosa da mídia hegemônica comandada pela Rede Globo, Lula foi reeleito. A eleição presidencial de 2006 mostrou-se uma das mais complexas da história política brasileira desde a reconstrução democrática.
No final do seu segundo mandato, Lula deixara o Planalto com aprovação de 83% da população, segundo a pesquisa Sensus. Em relação ao futuro governo da presidente eleita, Dilma Rousseff, 69% da população tinha a expectativa de que seria ótimo ou bom.
Com esses dados, conforme ocorreu em várias oportunidades, em que os setores progressistas avançam no combate à desigualdade social, os setores conservadores se rearticulam para retomar o comando do processo de dominação.
No decorrer das manifestações coordenadas pelo Movimento Passe Livres (MPL), surgem as mais diversas bandeiras, sem qualquer ligação com a reivindicação inicial por “Passe livre”.
Para se contrapor às propostas de viés à direita, Dilma apresentou na televisão um plano de cinco pactos em resposta às principais reivindicações das ruas – a defesa de uma maior responsabilidade fiscal para evitar o avanço da inflação, a proposta de criar uma assembleia constituinte para promover a reforma política, maiores investimentos em mobilidade urbana, a destinação de 100% dos royalties do pré-sal para a educação e ações voltadas para a melhoria da saúde pública.
Essas propostas, juntamente com a recusa da presidenta Dilma de encampar o projeto de reforma trabalhista da FIESP, foram o estopim para desencadear o processo de golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, sob a falsa acusação de ter cometido crime de responsabilidade pela prática das chamadas “pedaladas fiscais” e pela edição de decretos de abertura de crédito sem a autorização do Congresso.
Com a substituição de Dilma Rousseff pelo vice Michel Temer, criaram-se as condições para o patronato e as forças reacionárias voltarem-se contra as organizações sindicais e os trabalhadores. Logo no início do seu mandato usurpado, Temer abraçou a proposta dos patrões e, com apoio do Congresso e a conivência do Judiciário, implantou o projeto “Ponte para o futuro”, que, de saída, modificou 110 artigos da CLT.
A principal medida foi acabar, na prática, com a fonte de sustentação financeira das organizações sindicais, o que liquidou de vez com o principal defensor da classe trabalhadora. Sem recursos, os sindicatos perderam sua capacidade de mobilização e os trabalhadores tornaram-se presas fáceis na relação de emprego e no processo de exploração do trabalho.
O capitalismo criou na mentalidade do trabalhador desempregado, precarizado e uberizado a ideia de que ele era livre, seu próprio patrão e sem necessidade de se organizar em sindicatos.
Dentro desse novo contexto de desestruturação do trabalho, a luta identitária se sobrepõe à luta de classes como principal instrumento de mobilização da classe trabalhadora.
Assim, as esquerdas e os setores progressistas, que sempre tiveram no movimento operário a coluna de sustentação que garantia as conquistas políticas e sociais conseguidas, sem ter estado em nenhum momento com o poder de fato nem de direito, com o domínio absoluto que sempre tiveram as forças dominantes desde a colonização, não pode deixar-se vitimizar pela campanha derrotista da direita reacionária, com os resultados eleitorais municipais.
Nada perdemos, pois o poder nunca esteve em nossas mãos. Nós estamos onde sempre estivemos, enfrentando duras refregas contra o inimigo principal: o capitalismo. Com vitórias e derrotas, avanços e recuos, mas sempre com a certeza de que temos que continuar lutando por um mundo melhor, por uma sociedade justa e solidária.
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p style=”text-align: justify;”>Trajano Jardim – Jornalista. Conselheiro da Revista Xapuri.