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A MISSÃO DE QUEM ACORDA MAIS CEDO  É DESPERTAR TODA A ALDEIA

A MISSÃO DE QUEM ACORDA MAIS CEDO  É DESPERTAR TODA A ALDEIA

A MISSÃO DE QUEM ACORDA MAIS CEDO  É DESPERTAR TODA A VILA

No ano de 2014 dei uma entrevista para o jornal Opção, de Goiânia, que foi publicada pelo jornal e reproduzida na Revista Xapuri . Antes disso, eu já havia escrito vários artigos científicos sobre o mesmo tema, a extinção do Cerrado , com alcance baixíssimo em relação à entrevista, que teve grande repercussão.

Por Altair Sales Barbosa 

Não sei se foi por causa da linguagem, ou se foi em virtude do alcance da tiragem do jornal, ou mesmo do público diferenciado da revista, mas o fato é que o conteúdo da entrevista rendeu várias indagações e atitudes, diferentemente das centenas de palestras que eu já havia proferido sobre temas correlatos no Brasil e no exterior. 

Até hoje, depois de alguma exposição minha, volta e meia surge uma pergunta baseada naquela entrevista, o que me obriga a explicar tudo novamente, só que em um espaço de tempo menor, limitado ao tempo de uma resposta rápida, no contexto de uma palestra.

Por isso volto ao tema, visando ressuscitar alguns pontos já frisados ​​anteriormente, pois, como temos por princípio que a missão de quem acorda mais cedo é despertar toda a aldeia, lá vamos nós seguindo a coerência, sempre guiada pelos novos e atualizados mandamentos da prática científica.

CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA BIOGEOGRÁFICO DO CERRADO 

O Cerrado dos Chapadões Centrais do Brasil se nos apresenta como um Sistema Biogeográfico, com vários subsistemas que se diferenciam por solos, fisionomia vegetal, fatores atmosféricos, quantidade de água – superficial e nos lençóis subterrâneos –, comunidades animais etc. 

Qualquer modificação nos elementos dos subsistemas provoca modificações no Sistema como um todo. 

Como o Cerrado é uma das matrizes ambientais mais antigas da história recente do Planeta Terra, que tem seu início no Cenozoico, convém destacar que este ambiente já chegou ao seu clímax evolutivo, ou seja, uma vez degradado, não se recupera jamais na plenitude de sua biodiversidade. 

Importante destacar também que a maior parte das plantas do Cerrado tem um desenvolvimento lento, algumas espécies levam séculos para atingir a maioridade, fato que torna quase impossível um trabalho de recomposição vegetal com as plantas nativas. 

Sem mencionar que essas plantas estão condicionadas a um tipo de solo oligotrófico, com balanço hídrico específico, hoje difícil de ser encontrado de maneira geral no Cerrado.

Não se mede a degradação ambiental apenas pela ocorrência de uma ou outra planta. Há de se considerar comunidades, tanto vegetais como animais, incluindo insetos polinizadores, água etc. Tudo isso já não existe no Cerrado de forma contínua. O que há são fragmentos que não representam nem 10% da área total original. 

MODELO ECONÔMICO INSUSTENTÁVEL 

A partir do início da década de 1970, uma nova matriz territorial, com raízes e consequências predatórias, foi implantada na área, para incluir a economia do Cerrado dentro dos parâmetros da economia mundial. 

Daí em diante, foi só uma questão de tempo para que os problemas ambientais aparecessem e se agravassem cada vez mais. A questão atual do desaparecimento dos pequenos cursos d’água, alimentadores dos maiores, é apenas a ponta de um iceberg que tende a se tornar cada vez mais evidente. 

Todo grande empreendimento econômico, principalmente aqueles que degradam o meio ambiente, se apoia numa justificativa de que grandes oportunidades de emprego surgirão e de que a qualidade de vida das populações aumentará. 

Desde o início da implantação desse modelo, quando as grandes monoculturas foram implantadas no Brasil, isso não aconteceu. O que temos hoje é um quadro desolador, em decorrência desse modelo econômico concentrador, que empurra as populações rurais para as periferias das áreas urbanas. 

A grande expectativa da geração de emprego criada por empresários e governos não passou de um mito, cuja concentração de população no entorno da área produtiva gerou povoados e cidades mal planejadas, criou bolsões de miséria e aumentou em muito a prostituição infantil e a criminalidade.

Em termos ambientais, herdamos a possibilidade de vivermos um futuro incerto, com os rios secos e água potável cada vez mais difícil e cara.

DESMATAMENTO E QUEIMADAS 

A derrubada em larga escala da vegetação nativa tem demonstrado que os gases cósmicos se concentram na atmosfera baixa da Terra, aumentando o efeito estufa e o aquecimento global. 

Com o agronegócio predatório desmatando e queimando imensos quinhões de Cerrado, vem-se provocando uma inversão climática que resulta, dentre outras consequências, no aparecimento de furacões em áreas onde não existiram desde o início do Holoceno. 

É preciso esclarecer, entretanto, que o fogo, historicamente, não é o grande vilão da destruição do Cerrado. Enquanto formação vegetal, o Cerrado é explicado por uma teoria denominada escleromorfismo oligotrófico. O oligotrofismo do solo é acentuado pelo fogo que, basicamente, dele retira seus nutrientes básicos. 

Desde longa data, a vegetação do Cerrado, principalmente nos seus aspectos senso strictu e cerradão, retém o máximo de açúcar que retira do solo e sequestra, para seu alimento, grande quantidade de CO² da atmosfera, depositando esse gás nas raízes profundas. 

Nesse processo, o açúcar é transformado em um tecido chamado esclerênquima, que é armazenado nas bifurcações das plantas, dando a elas um caráter tortuoso.

Existem muitos, mas, para resumir, citaremos a existência de caules subterrâneos, com função de reservas e com gemas, que permitem a reprodução das plantas após a passagem do fogo; são processos adaptativos que demonstram uma história evolutiva complexa e antiga dessa vegetação.

Outros tipos de vegetação precisam de situações extremas para sobreviverem. No caso polar, por exemplo, existem as tundras, que florescem depois do degelo. O gelo polar funciona como o fogo, provoca quase o mesmo efeito, para a rebrota das plantas. 

As sequoias que ocorrem principalmente na Califórnia, na América do Norte, é outro tipo de formação vegetal que intimamente convive com fogo, e este é primordial para sua propagação e sobrevivência. De formação antiga, tal qual o Cerrado brasileiro, essas florestas representam, para a região onde ocorrem, o mesmo papel que a vegetação de cerrado representa para os chapadões centrais da América do Sul.

Não se pode levar adiante qualquer estudo sobre o Cerrado sem considerar o fogo, elemento com o qual essa paisagem está intimamente associada. Apesar da sua importância para o entendimento do Sistema Biogeográfico, a ação do fogo no Cerrado é ainda mal conhecida, e geralmente marcada por questões mais ideológicas do que científicas.

O estudo do fogo, como agente ecológico, será mais completo se também se observam as comunidades faunísticas e os hábitos que certos animais desenvolveram e que estão intimamente associados à sua ação, cuja assimilação, sem dúvida, necessita de arranjos evolutivos caracterizados por um tempo relativamente longo. 

Algumas observações constatam, por exemplo, que a perdiz (Rhynchotus rufescens), só faz seu ninho em macega, tufos de gramíneas queimadas no ano anterior. Visitando várias áreas de Cerrado, imediatamente após as queimadas, constata-se que, mesmo com as cascas das árvores e arbustos carbonizados superficialmente, há entre as cascas e o tronco intensa microfauna. 

Fenômeno semelhante acontece com extrato gramíneo, que poucos dias após a queimada, mostra sinais de rebrota, que constituem elemento fundamental para a concentração de certas espécies animais.

ADAPTAÇÃO 

A ação do fogo no Cerrado criou neste ambiente, ao longo do tempo, vários exemplos de adaptação. No caso animal, pode-se citar, por exemplo, o caso da ema (Rhea americana), que faz um ninho grande, com cerca de 50 ovos que são chocados pelo macho no meio do campo. 

Para proteger o ninho, a ema faz um pequeno aceiro para, quando o fogo vier, não atingir o ninho. Isso era possível porque se tratava de um fogo brando, rápido e rasteiro, que simplesmente lambia o resto das gramíneas secas e mortas. Esse fogo não tinha força para atravessar o pequeno aceiro feito pela ave.

Outro dado importante a destacar, quando se procura entender a ação do fogo ao longo da história, é que a ação do homem pré-histórico brasileiro não funcionou como elemento perturbador dessa paisagem, porque, além da ocupação do interior do Brasil ser um fato relativamente recente, era insignificante em termos populacionais para produzir perturbações em amplas escalas; suas ações revestem-se de caráter puramente local. 

Entretanto, o calor e as variações do albedo, sempre altos nas áreas do Cerrado, provocam intensos movimentos convectivos na atmosfera, onde a concentração da umidade e o forte gradiente térmico atmosférico montam rapidamente tempestades magnéticas caracterizadas pela intensidade dos trovões, relâmpagos e raios, provocando o fogo espontâneo, que antes era brando e tinha a função de limpar os tufos das gramíneas nativas, para que brotos novos surgissem ou para a quebra da dormência das sementes, que propagavam essas espécies.

De imediato vêm as floradas e, com as primeiras chuvas, a rebrota das gramíneas; em seguida chegam os primeiros frutos. Esse ciclo complexo sustenta os herbívoros que, por sua vez, sustentam os carnívoros, restabelecendo novamente o ciclo da vida.

Também é importante salientar, como causas do fogo espontâneo no Cerrado, que nesse Sistema encontra-se uma grande variedade de rochas que refletem com intensidade a luz do sol e que essa luz, ao encontrar massa combustível vulnerável, imediatamente se inflama. 

As rochas quartzosas, desde as esbranquiçadas até o quartzo hialino, as biotitas, as muscovitas, o sílex, o arenito silicificado, todas podem provocar esse tipo de fenômeno. Já presenciei isso muitas vezes, em longos trabalhos de campo.

Outro fenômeno muito comum de fogo espontâneo no Cerrado ocorre nas margens dos rios, nas veredas, nos pantanais e até nos lagos artificiais. Trata-se do fogo-fátuo, que é a combustão resultante do contato de gases metano e fósforo com o oxigênio da atmosfera. O fogo-fátuo é comum nesses locais. 

Nas veredas, em função da presença de turfa e constante material em decomposição, esse fenômeno é muito comum e pode se alastrar com facilidade, por causa da existência de um estrato inferior composto de muitas gramíneas nativas, dentre estas, o capim dourado. 

Entretanto, os locais onde fogos-fátuos ocorrem com mais frequência são as áreas de pantanais; no Sistema do Cerrado existem pequenos pantanais e grandes pantanais. Entre os pequenos, podemos citar os do rio Paranã, em Flores de Goiás, e o pantanal do rio Capivari, próximo à cidade de Acreúna, Goiás.  Entre os grandes, o destaque é para o Pantanal Mato-grossense, da sub-bacia hidrográfica do rio Paraguai. Aliás, fisiograficamente, esta paisagem não passa de um subsistema do Sistema Biogeográfico do Cerrado. 

Nesse local, na época das águas, formam-se grandes e pequenas lagoas marginais, algumas perenes, mas outras, principalmente as menores, quando vem o período de estiagem, começam a secar. Quando cheias, estavam recheadas de vidas, que com a estiagem agonizam à medida que o processo de seca aumenta. 

Como o fundo é argiloso, em função do processo de sedimentação lento, muitos animais, na ânsia da sobrevivência, se misturam a esse meio argiloso da lagoa, até que toda a água se evapore. O mesmo processo de decomposição acontece pela ação das bactérias e, quando os gases saem por alguma brecha, o contato com o oxigênio provoca o fogo azulado. 

Nos pantanais, porém, a massa combustível é bem maior que nas outras, daí a possibilidade de o fogo se alastrar pelas gramíneas nativas secas é também maior. 

DEVASTAÇÃO

Findo o ciclo da mineração no centro do Brasil, em função de múltiplas razões, os antigos mineiros apossaram-se das terras em volta dos antigos centros mineradores, para desenvolver uma agricultura e uma pecuária básicas, que pudessem alimentar a si e aos seus. 

Dessa forma, a pecuária, antes de se transformar em intensiva e altamente científica e tecnológica, foi praticada extensivamente à solta sobre as imensas pastagens, em uma tradição que se iniciou em terras situadas no oeste do rio São Francisco, nos gerais da Bahia e de Minas.

Com a introdução em larga escala do gado indiano, especialmente a raça nelore, a partir da década de 1940, associada às técnicas de inseminação artificial, foi tomando proporções gigantescas a introdução de gramíneas exóticas nas áreas do Cerrado. 

Por serem severas, agressivas e invasoras, essas espécies logo se espalharam nos diversos ambientes de cerrado, provocando a perda da biodiversidade.  Além disso, por não possuírem sistemas radiculares complexos, essas gramíneas não absorvem as águas das chuvas da forma que fazem as gramíneas nativas. A consequência imediata é a diminuição da umidade do solo e dos depósitos de água subterrânea. 

O manejo inadequado dessa massa combustível e o preconceito contra o fogo, fundamentado nas raízes religiosas da população, que confunde fogo com inferno, contribuem para que jamais se entenda que o fogo é um dos elementos que compõem o meio ambiente. 

Um dia o fogo chega, pois o planeta é dinâmico e os fenômenos que aconteciam no passado continuam ocorrendo. Portanto, o fogo pode chegar por causas naturais ou antrópicas ou pela associação das duas e, quando isso acontece, ele se transforma em queimada muitas vezes incontrolável e prejudicial a qualquer forma de vida. 

Esse quadro só reforça o que venho afirmando com relação ao Cerrado: na plenitude de sua biodiversidade, o ambiente não existe mais. E, se hoje o fogo aterroriza, amanhã muitos seres morrerão de sede, e a disputa dos humanos pela água será cada vez mais acirrada.

A introdução das gramíneas exóticas agressivas e invasoras por excelência, que deu o último empurrão para a desconfiguração do Cerrado, exige um plano de manejo adequado, quer seja utilizando o próprio fogo, em áreas e tempos alternados, quer seja limpando com máquinas as áreas com as macegas incendiárias. 

De uma forma ou de outra, o prejuízo ambiental é irreversível, mas, pelo menos, proporciona aos humanos momentos de mais conforto. 

Altair Sales Barbosa – Pesquisador do CNPq. Pesquisador convidado da UniEVANGÉLICA de Anápolis. Sócio Emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Conselheiro da Revista Xapuri, desde a segunda edição, publicada em dezembro de 2014. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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