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AI DE TI, HAITI, SANGRADO CORAÇÃO

AI DE TI, HAITI, SANGRADO CORAÇÃO


Ai de ti, , sangrado coração

Se o mundo é um vale de lágrimas, o Haiti é, certamente, o cantinho mais irrigado deste vale.
René Depestre

Por José Ribamar Bessa Freire

Eles fizeram uma longa fila e foram embarcando, um a um, no navio chamado “Sagrado Coração de Jesus”, que zarpou de Tabatinga (AM) para Manaus no sábado, 21 de janeiro. Os passageiros, na realidade, não sabiam direito de quem era aquele coração: de Jesus ou de ?

Desconfiavam que era de Maria. Com todo o respeito ao calvário do filho, só um coração sangrado de mãe – onde sempre cabe mais um – pode abrigar mais de 400 haitianos com tantos sonhos, sofrimentos, dor, medo.

O medo dentro do barco-coração que descia o rio Solimões era o medo da fatalidade que sempre acompanhou o Haiti”. Quem diz isso é um amigo chileno, Fred Spinoza, professor de espanhol em Tabatinga, que testemunhou a passagem dramática dos haitianos pelo Alto Solimões, ameaçados de se tornarem um boat people – refugiados que ninguém quer receber e que, sem chão onde pisar, transformam o barco em sua nova pátria e ficam, à deriva, vivendo na terceira margem do rio.

Fred, poeta como qualquer chileno – todo chileno verseja – me enviou trechos do Navio Negreiro de Castro Alves para ilustrar o cenário daqueles haitianos amontoados em redes armadas umas sobre as outras. No domingo passado, ele me cantou o roteiro do motor da linha: “O Sagrado Coração, que saiu ontem daqui, deve passar hoje por Fonte Boa, amanhã por Coari, e chegar no Roadway, em Manaus, na terça, dia 24”Manifestou preocupação quanto à recepção aos hermanos haitianos em Manaus.

SANGRADO CORAÇÃO

Manaus, nascida de um parto sangrento, é filha de um crime e de um roubo, cometidos em 1669 por militares portugueses. Tropas armadas invadiram e saquearam a aldeia dos Manaú, mataram muitos índios, escravizaram outros e usurparam suas terras.

Seu comandante, Francisco da Mota Falcão, construiu ali, bem em cima do cemitério , o Forte de São José do Rio Negro, usando a mão de obra de índios escravizados e, como matéria-prima, o barro das urnas funerárias quebradas e violadas. Portanto, foi a pilhagem colonial que pariu Manaus.

Por isso, talvez, Manaus sabe ser impiedosa, cruel. Mas sabe também ser generosa, como mostra o outro lado de sua história. Muitas vítimas do terremoto de Lisboa, de 1755, foram acolhidas pela cidade já mestiça, que lhes deu teto, trabalho, comida.

Na época da borracha, entre 1877 e 1914, mais de 500 mil nordestinos, fugindo da seca, migraram para a , muitos deles armaram suas redes aqui. Com eles chegaram sírios, libaneses, espanhóis, judeus, árabes, palestinos, japoneses, espanhóis e nova leva pacífica de portugueses. Recentemente, a Zona Franca trouxe os sulistas.

Dessa forma, a cidade foi se construindo sobre os alicerces da , com trabalho, sangue e suor dos estrangeiros que souberam muito bem se integrar à sociedade de base índia. Era tudo gente de paz. Como o portuga José Ventura – o Comandante Ventura – que em 1961 morreu para nos salvar. Manaus não tinha como combater incêndios.

Ele criou em 1952 o Corpo de Voluntários. Faleceu quando combatia um incêndio que consumia vorazmente a periferia da cidade, como nos lembra pesquisa histórica realizada por Roberto Mendonça.

Outro portuga que ama a cidade e ajudou a construí-la é o dono do bar da Bica, o Armando, o mais caboco de todos os portugas, que está nesse momento, aos 75 anos, numa UTI de um hospital manauara com uma infecção pulmonar.

Armando e o comandante Ventura fizeram mais por Manaus do que o belicoso Francisco da Mota Falcão, Teixeira e todo o exército colonial. Jornais lusos editados nessa época no Amazonas, estudados pelo historiador Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, estão nos revelando muito sobre essa migração.

ÁGUA NO FEIJÃO

Os haitianos que chegaram agora vieram também em missão de paz, de trabalho, mas foram recebidos à bala com um grito de “nós não queremos vocês aqui”. O governador do Amazonas [hoje senador], Omar Aziz (PSD), filho de um imigrante palestino que se mudou para Manaus em 1968, debochou, sugerindo que o governo federal os abrigasse em Brasília, “em apartamentos de deputados federais”, conforme matéria publicada pela Folha de São Paulo assinada pela correspondente Kátia Brasil.

Pra puxar o saco do governador, a colunista social Mazé Mourão atacou os haitianos, chamando-os de abusados”. Num texto boçal, reclamou que eles estão tomando conta dos empregos nas fábricas do Distrito Industrial e “como não sabem falar a nossa língua, trabalham caladinhos e até passam da hora sem cobrar nada”

Preocupada exclusivamente com o quintal de sua casa, sugere: Por que os haitianos não ficam em Tabatinga ou vão povoar outros municípios do Amazonas?”. Conclui: “Sorry, sorry e sorry, o Haiti definitivamente não é aqui”.

Que me perdoem os ouvidos pudibundos, mas esse é o lado escroto de Manaus, o lado “farinha pouca meu pirão primeiro”. A colunista social alega que se nós não conseguimos resolver os nossos problemas, que dirá de quem chega e toma de assalto esta Manaus de Mil Contrastes”. 

É como se ela dissesse, em 1919, ao Comandante Ventura e às centenas de portugas que com ele vieram: “Não podemos receber vocês, porque temos muitos problemas, não temos sequer um Corpo de Bombeiros Municipais” …E olha que nesse momento naufragava a da borracha, com centenas de mendigos espalhados pelas ruas da capital.

Felizmente, o outro lado, generoso e solidário, o lado “água no feijão que chegou mais um” se manifestou imediatamente. Dezenas de leitores ocuparam as apoiando artigos que se solidarizaram com os haitianos e lhes deram as boas-vindas. Três deles merecem destaque.

Allan Gomes, com base no processo histórico da Amazônia, sustentou que “a imigração haitiana não deve ser vista como um problema, mas como parte da solução”. Da mesma forma que Manaus não podia apagar um incêndio porque carecia de bombeiros e foi salva pela migração lusa, assim também os haitianos podem contribuir para melhorar a cidade, se formos capazes de organizar e planejar a estadia deles aqui.

Alberto Jorge, coordenador geral da CARMA – Coordenação Amazônica da Religião de Matriz Africana e Ameríndia – confessa que teve ânsias de vomitar quando leu o texto de Mazé que destila ódio e desprezo, é preconceituoso, asqueroso em todos os sentidos. E Ismael Benigno considerou que a reação dela mais parece um chilique da socialite Narcisa Tamborindeguy contra os pobres do que uma tentativa de entender o problema que ainda vamos ter.

De qualquer forma, se o artigo tem algum mérito é o de desencadear um debate, permitindo revelar a xenofobia e a intolerância que trazemos dentro de todos nós, mas também a com os refugiados. Quem sofreu o exílio, por razões políticas, econômicas ou sociais, sabe a importância dessa acolhida.

É evidente que a questão é complexa, é claro que precisamos organizar uma intervenção de forma mais planejada, mas sem preconceitos, como o de um leitor de Mazé Mourão, que se referiu depreciativamente à religião dos haitianos e à magia negra.

Se a colunista social não pedir desculpas, publicamente, nós, os que ficamos chocados com seu texto – sorry, sorry, sorry – acamparemos com os haitianos no quintal da casa dela. Faremos um trabalho de magia negra para transformá-la em um ser inteligente, sensível e solidário. Se bem que suspeito não existir magia capaz de dar jeito nisso. Mas a gente tenta.

José Ribamar Bessa Freire – Professor. Cronista. Escritor. 

NOTA DA REDAÇÃO: Esta crônica foi publicada pelo professor José Ribamar Bessa Freire em seu blog www.taquiprati.com.br em 29 de janeiro de um ano passado. Tendo em vista o açoite de imigrantes por soldados norte-americanos montados em cavalos na fronteira do México e as exigências inexequíveis do governo brasileiro para receber imigrantes do Afeganistão, este é um dos textos que vale a pena ler de novo. Continua valendo como posicionamento político e como reflexão.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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