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As Amazonas: Mulheres guerreiras da floresta

As Amazonas: guerreiras da floresta

Desde 1542, quando o explorador espanhol Francisco Orellana se aventurou ao lado leste dos Andes em busca do lendário eldorado (conforme o relato do frei Gaspar de Carvajal, que o acompanhou na expedição), narrativas sobre mulheres guerreiras que habitavam o imenso rio desconhecido se tornaram recorrentes na literatura sobre essa região, que sempre foi objeto do imaginário (e desejo) de exploradores de todas as nacionalidades. 

Por Marcos Jorge Dias 

Nos dias atuais não é diferente.  A é um território de interesse global, seja por sua biodiversidade de valor imensurável, seja pela imensa floresta onde resistem as mitológicas amazonas, do tempo presente. Mulheres que lutam diariamente contra invasores, nacionais e internacionais; contra o e outros modos de destruição, que avançam sobre o lugar em que nasceram, vivem, criam seus filhos e filhas e de onde tiram seu sustento, Numa constante pela sobrevivência em um território inóspito que requer coragem, força, determinação e resiliência.

Moradoras do Seringal 2 Irmãos, na Reserva Extrativista Chico Mendes, município de Xapuri, no Acre, as vidas de Leide Aquino, Dona Conde e Rosa se entrelaçam, como os cipós nas altas copas das castanheiras. Vidas entrelaçadas nas dificuldades, nas alegrias das conquistas e na altivez do protagonismo que exercem, dentro e fora da comunidade em que vivem. 

Leide Aquino 

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Foto: Marcos Jorge Dias

O tempo amazônico é diferente ao que estamos acostumados nas cidades grandes. Saímos de , capital do Acre, nas primeiras horas da manhã de sábado. Nosso destino era Xapuri, onde nos encontraríamos com o Tião Aquino, extrativista e morador da Reserva Chico Mendes, que nos levaria até o seringal 2 irmãos, onde íamos participar da reunião mensal da associação de moradores daquela comunidade.

Chuva, rodovia esburacada e parada para o café no município de Capixaba nos fizeram chegar bem depois do previsto. Tião já nos aguardava ansioso e nos trasladamos para a sua camionete. Ao chegarmos à balsa que faz a travessia do rio Acre para o bairro Sibéria (por onde se dá o acesso à Reserva extrativista), os funcionários da balsa tinham parado, pois era o horário de almoço deles. Não nos restando o que fazer, fomos procurar um lugar para, também, almoçar. 

Após a travessia, rodamos por 58 km no ramal dentro da Reserva e no percurso encontramos boiada, trechos derrapantes e atoleiros.  O sol já ia se escondendo nas matas quando chegamos na colocação República, onde pousaríamos. 

Leide Aquino (nascida Maria Araújo), 57, a proprietária, nos recebeu no alpendre da casa, cercada pelos netos, filhas, trabalhadores, e pelas criações (galinhas, patos, gansos e porcos). Leide, como é conhecida nos , no movimento social e na política, tinha no semblante uma aura de senhora da floresta. 

A ampla casa com poucas divisórias (como é costume nos seringais), possui energia elétrica, água encanada e telefonia rural.  O marido, Júlio Barbosa, estava viajando, e quando isso ocorre (e ocorre com frequência), é ela quem assume os serviços da propriedade. 

Acompanhar a pesagem e o ensacamento da castanha, comprar material para construção de uma cerca, remédios para os animais, contratar e pagar trabalhadores, dirigir o quadriciclo até a cidade de Xapuri, onde mantém uma residência, são atividades cotidianas para Leide.

Após o jantar, começamos uma conversa sem roteiro de entrevista. Às vezes falando do passado, às vezes do tempo presente, Leide foi desfiando momentos de sua vida.

“O nome escolhido pelos meus pais era Leide Maria Lopes de Araújo. Na hora do batismo e registro, que na época o padre também era juiz, o padre juiz tirou o Leide registrando só Maria, mas minha mãe (dona Corina), continuou com o nome que havia escolhido”.

Nasceu no seringal Fortaleza, no município de Xapuri, e depois morou no Palmari, vizinho do 2 irmãos, onde vive atualmente.  

Desde pequena se acostumou a ver a casa sempre cheia de gente. O pai, Sebastião Gomes de Araújo (seu Sabá), foi delegado sindical e era diretor do STR de Xapuri, quando o Chico Mendes foi assassinado, em dezembro de 1988. 

Cresceu em meio à efervescência coletiva da organização dos Sindicatos dos Trabalhadores (de Brasileia e Xapuri), das delegacias Sindicais da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG, no Acre, da organização das Comunidades Eclesiais de Base, e por cinco anos morou na capital, Rio Branco, para estudar. 

Com o olhar distante em meio as lembranças, Leide conta que assim que pode, voltou às origens no seringal, na Reserva extrativista. E, mesmo com um vasto currículo pelos cargos e funções que desempenhou na administração pública e no movimento social (foi professora do projeto seringueiro; coordenadora regional do Conselho Nacional dos Seringueiros, atual Conselho Nacional das Populações Extrativistas; secretária Municipal de Assistência Social de Xapuri; presidente da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Agricultura do Acre – FETACRE; presidente do Grupo de Trabalho Amazônico – GTA;  Assessoria da mulher do governo do estado; gerente da Secretaria de Agricultura e Produção Familiar – Seaprof, em Xapuri),  gosta mesmo é de estar na sua casa, no seringal, no seu habitat, que é a floresta. 

Atualmente, ocupa o cargo de secretária executiva da Associação de Moradores da Reserva Extrativista em Xapuri – AMOPREX, coordena a feira da solidária no município e… é a Leide Aquino. Companheira do Júlio Barbosa, mãe da Iara, avó da Maryah, do Diogo, do Júlio Neto e do Mateo. 

Uma mulher múltipla, enraizada na floresta, que luta todos os dias por um melhor para a sua prole e para todos e todas que compõem o mosaico amazônico em que habita. 

Raimunda Ferreira (Dona Conda)

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Foto: Marcos Jorge Dias

O cheiro de café passado no coador de pano deliciava o ambiente da ampla cozinha da casa de madeira. Os ovos (recém coletados nos ninhos), chiavam na gordura da frigideira, a macaxeira cozida fumegava numa travessa de louça e o pão de milho molhado pelo de castanha esperavam, sobre a mesa rústica, que começássemos a comer. 

No seringal a cozinha é um espaço social, e as conversas, quase sempre, começam com um “arrudeio” para depois de algum tempo se chegar ao assunto a ser tratado.  

Assim, enquanto Leide finalizava os preparativos do quebra-jejum, D. Conda – que chegou cedo dirigindo seu motociclo – e eu, falávamos amenidades. “O ramal está bom? pegaram chuva de Xapuri prá cá?”  O olhar desconfiado de quem está acostumada com gente que chega perguntando coisas sobre a sua comunidade, brilhava à medida em que surgia uma nova pergunta. E, entre um gole de café e uma mordida na tapioca, nossa conversa fluiu como uma dança de salão na manhã ensolarada de domingo. 

A Reserva Extrativista é dividida em seringais, que por sua vez são divididos em colocações. Nascida no seringal Filipinas e criada nas margens do rio Xapuri, Raimunda Ferreira Conde, 64 anos, conta que veio para o 2 Irmãos em 1984, com o marido e três filhos pequenos. 

A colocação Uruqueu, onde mora desde então, foi adquirida por um “marreteiro” chamado Chico Leitão, para o qual o marido, Sebastião Conde, se comprometeu pagar o valor de R$ 800 cruzeiros, em borracha. 

Após dois anos entregando borracha em pagamento pela propriedade, quando Sebastião foi acertar as contas com Chico Leitão, descobriu que devia três vezes mais o valor inicial ao combinado com o marreteiro. “Foi um tempo de desespero e dificuldades, pois os marreteiros engavam a gente”, lembra.

Com muito sacrifício e economizando tudo o que podiam, às vezes comprando só o extremamente necessário:  sal, fósforo, óleo e pólvora para o cartucho da espingarda, o casal conseguir pagar a dívida e sair das mãos de Chico Leitão.

A filiação ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, criado por Chico Mendes, ajudou muito, pois numa das reuniões de formação o marido Sebastião (por saber fazer as “quatro operações”) foi indicado para ser monitor de educação na da comunidade, que havia sido construída em regime de mutirão. Depois de pensar e conversar com a mulher, achou melhor que fosse ela a trabalhar na escola. Ele gostava mesmo era do trabalho de cortar seringa e coletar castanha.

Raimunda sabia ler e escrever (coisa rara naqueles tempos nos seringais).   Foi chamada para fazer um curso de formação pelo “Projeto Seringueiro”, que era desenvolvido pelo Centro dos Trabalhadores da Amazônia – CTA, naquela região de Xapuri. E a Raimunda do Conde, a condessa, que foi alcunhada de D. Conda, pelo “Pingo”, professor do Projeto Seringueiro, assumiu, em 1990, uma sala de aula na escola “Ivair Higino”, líder comunitário que havia sido assassinado em junho de 1988. 

Desde então, Dona Conda, superou dificuldades, contornou obstáculos, derrubou preconceitos e conquistou espaços.  Atualmente, é professora aposentada, a primeira mulher a assumir a presidência da Associação dos Moradores do seringal 2 irmãos (março /22 a março/2024). Além disso, é a evangelizadora da comunidade, na igreja de santa Luzia.

Em um território de disputas violentas, onde o poder tradicional do patriarcado ainda impera, Dona Conda conta, num tom de confidência, que às vezes também é preciso fazer uso da força.   “Em uma festividade na comunidade, dois ‘brabos’ se excederam na bebida e quiseram criar tumulto. Passaram o resto da noite amarrados, até que o juízo voltasse”. Desde então, todas as festividades contam com policiamento. 

Sem darmos conta do tempo, o café acabou e já era hora de Dona Conda ir presidir a reunião mensal com os moradores da comunidade. Ajeitou os cabelos e abrindo um largo e radiante sorriso, autorizou: “Agora pode fazer a foto”. 

Rosa Aquino

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Foto: Marcos Jorge Dias

O nome é de flor, sensível e delicada. Mas a alma é de guerreira, das que não têm medo de nada.

Os ritos sociais no seringal são sutis. É preciso observar para entender.  Estávamos na sede da Associação de Moradores do Seringal 2 irmãos para a reunião mensal.  Aos poucos os moradores foram chegando e formando pequenos grupos que conversavam entre si.   Enquanto D. Conda e Leide organizavam a documentação, Rosa Maria Ferreira da Silva, 43 anos (a mais jovem das três mulheres que irão coordenar a reunião), organizava o ambiente, colocando as cadeiras em círculo. 

Com o olhar sempre atento às falas dos participantes, Rosa só se manifestou quando solicitada para falar das suas atividades. Era como se houvesse uma hierarquia entre as três. Quando terminou a reunião, fizemos a foto e nos preparamos para voltar a Xapuri. Mas antes, paramos na casa de Rosa, na colocação “Já começa”. 

A jovem senhora em seus domínios, organizando as coisas da casa e o que tinha de levar para a cidade, não parava.  Quando finalmente entramos no carro, durante a viagem de volta, Rosa foi se abrindo. 

Nasceu em Rio Branco, Acre, e veio morar na comunidade 2 irmãos, onde vive até hoje, com um ano de idade.

Formada em química, no Instituto Federal do Acre IFAC – Campus Xapuri, trabalha como Agente Comunitária de Saúde – ACS. “É um trabalho desafiador, mas é um trabalho que gosto de fazer, gosto de conversar com as pessoas e me sinto realizada em poder ajudar”.

Segundo Rosa, os maiores desafios que encontra como ACS é no período invernoso. “Na nossa região os caminhos ficam ruins e os igarapés cheios; e, nos dias sem chuva, o sol é muito quente. Porém, quando chego nas casas e converso com as pessoas, esqueço até que tenho uma longa jornada pela frente”. 

Às vezes, nos locais de mais difícil acesso fica sem ir, pois como trabalha com prevenção, não pode ela mesma se arriscar sozinha pelas matas. “Tenho marido e dois filhos para cuidar também”, justifica. 

Com jeito simples e despretensioso, falou dos sonhos: “Os meus sonhos, como já te falei, quero construir um conforto na cidade e na minha colônia para quando me aposentar poder descansar com a família”.

E nessa conversa, quando percebemos já estávamos chegando de volta à sede do município de Xapuri. E, de tudo que vimos e ouvimos dessas três mulheres da floresta, ficou a certeza de que a força e ancestralidade das amazonas guerreiras (mitológicas ou não) segue presente no sangue e na coragem de suas descendentes. 

unnamed 1Marcos Jorge Dias – Escritor e poeta acreano. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri

 

 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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