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AS CARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO

AS CARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO 

Figuras da barca, leão da barca, cara de pau: assim são chamadas as carrancas do Rio São Francisco

Os primeiros registros de ornamentações em embarcações remontam a seis mil anos, no Egito. Eram cabeças de touros estilizadas, um importante no misticismo dos povos primitivos.

Por Ticianeli/Histórias de Alagoas

Estes elementos também podiam representar homenagens às antigas divindades. Há ainda a possibilidade de se conceber a embarcação como um ser vivo ou o próprio deus, e por isso teria uma cabeça.

AS CARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO 
Foto: Divulgação/Glauco Umbelino

Esse animismo pode ser observado nos olhos pintados nos costados dianteiros, ali colocados para ajudar a encontrar os caminhos.

Na Idade Média, os vikings colocavam em seus barcos de (drakkars) imagens de animais fantásticos, principalmente dragões. Em alguns havia também serpentes e cavalos. Essas figuras eram móveis e retiradas quando aportavam em amigas.

Nos séculos XIII e XIV, quase desapareceram devido às formas arredondadas das proas, que passaram a priorizar suas finalidades bélicas, ali instalando plataformas.

Mesmo quando a arquitetura naval abandonou essa proa redonda, as figuras não mais voltaram à proa, dando lugar aos “castelos”. Somente no século XVI é que estas decorações retornaram, desta feita em formas barrocas.

No século XVIII assumiram a função decorativa, representando a personalidade que deu nome ao navio ou ao seu armador.

Nos da América, no século XIX, estas figuras revelavam a influência chinesa e oriental nas embarcações.

Com o advento da navegação a vapor surgiu um novo estilo de proa, verticalizada. Com isso, as ornamentações sobreviveram somente nos veleiros. Atualmente, com a forma côncava da proa, voltaram a ser utilizadas, mas com pouco relevo e sem proeminência.

CARRANCAS NO BRASIL 

Segundo Paulo Pardal no seu Caderno de Folclore Carrancas do São Francisco, “a origem das carrancas do São Francisco deve ter sido a imitação de navios de alto-mar, vistos nas capitais da Província da Bahia e do país pelos pequenos nobres e fazendeiros do São Francisco em suas viagens à civilização”.

Para ele, são figuras originais de tipologia zooantropológica que não se encontra em outras regiões. Ressalta ainda que não há qualquer influência das decorações navais dos povos primitivos da África ou da Ásia.

AS CARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO 
Foto: Wikipedia

Foram por muito tempo as únicas embarcações populares dos povos ocidentais a apresentarem figuras de proa. São esculturas únicas no mundo, mas já nos séculos XVIII e XIX sobreviviam somente no Rio São Francisco. Na origem eram decorativas, mas depois receberam atribuições místicas.

Segundo Pardal, foi o isolamento do médio São Francisco que permitiu a criação de um tipo de figura de proa inédito em todo o mundo. Tinham olhos esbugalhados, misto de homem e de animal, com suas sobrancelhas arqueadas, expressão de ferocidade e cabeleira lembrando uma juba de leão.

Foram colocadas inicialmente nas barcas que somente começaram a navegar no Rio São Francisco nos 40 anos posteriores à independência de 1822, como registrou Richard Francis Burton, no de 1869Highlands of the Brazil. A primeira delas foi construída em Penedo.

Esse modelo foi levado para o médio São Francisco, como anotou Edilberto Trigueiros em A língua e o folclore da bacia do São Francisco, de 1978: “Acrescentaram-lhe, porém, um esdrúxulo ornamento que não existia no símile do baixo São Francisco – a figura de proa”.

Outro pesquisador, Thomás Paranhos Montenegro, escreveu no livro A província e a navegação do rio São Francisco, publicado na Bahia em 1875, que as barcas surgiram na parte média do rio em fins do século XVIII.

Paulo Pardal avalia essa datação mais correta e menciona Spix e Martius que viajaram a região entre 1817 e 1820 e citaram no livro Reise in Brasilien, de 1838, que a navegação no rio era realizada “em simples barcaças” ou em “ajoujos” (duas ou três canoas presas por traves perpendiculares), sendo barcaça a tradução para os barcos locais.

O declínio das barcas teve início com a instalação da representação da Capitania dos Portos em Juazeiro e Pirapora, que começou a exigir o cumprimento de regulamentos até então inexistentes para os proprietários destas embarcações.

Substituindo os barcos surgiram as grandes canoas originárias do baixo rio, bem mais leves e viajando com vento de qualquer quadrante com boa velocidade. Sua tripulação era menor que a dos barcos, com dois ou três homens apenas.

Os barcos deixaram de funcionar totalmente na década de 1950.

CARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO 

As carrancas do Rio São Francisco eram conhecidas como Figuras de Barca ou, em Juazeiro, como Leão de Barca ou Cara de Pau.

Os primeiros registros da expressão carranca são de 1888 em um livro publicado por Antônio Alves Câmara e Durval Vieira de Aguiar.

Paulo Pardal afirma que “as primeiras carrancas datam de 1875-1880, embora seu uso no médio São Francisco só se tenha generalizado neste século [XX]”.

No livro Caçando e pescando por todo o Brasil, do início da década de 1940, Francisco de Barros Jr. assim descreveu as carrancas:

Uma estranha particularidade, também somente observada neste rio, é a carantonha, que, à guisa de ‘rostro’, enfeita as proas, se enfeite se pode chamar a coisas tão horrorosas. São figuras teratológicas, que representam cabeças de animais com cara de gente e vice-versa.

Quanto mais horripilante é a figura, tanto melhor. As esculturas são coloridas, predominando as vermelha, azul e preta. Uma que muito me impressionou, pela perfeita concordância dos elementos heterogêneos reunidos, foi uma cabeça de carneiro ornamentada de grandes chifres naturais e que tinha a cara de homem barbado, com orelhas de burro e nariz de porco!

A figura era pavorosa, mas tudo tão bem ajustado, que nos recordava certos tipos muito nossos conhecidos… Os autores são inegavelmente artistas, mas só uma imaginação doentia será capaz de criar e harmonizar características tão dessemelhantes.

São curiosos espantalhos, mais curioso ainda é, porém, o motivo desses monstrengos. São propositadamente compostos para… afugentar o diabo, permitindo-lhes viagens seguras e felizes!

No final do século XIX, quando surgiram as carrancas, mais de 200 barcas navegavam o São Francisco. Paulo Pardal avalia que sequer metade usava a carranca. Ele atribui isso, em parte, por serem poucos os escultores populares na época.

Marcel Gautherot, que percorreu todo o médio São Francisco entre 1942 e 1945, declarou que viu somente cerca de 30 carrancas. Foram suas fotografias que despertaram o interesse por estas esculturas.

Algumas destas esculturas estão hoje em coleções particulares ou de museus. São peças muito raras e valiosas. Foram adquiridas quando as barcas movidas a varas foram aposentadas no início da década de 1940.

Não eram reconhecidas como  popular. Isso só aconteceu a partir de 1954, durante os festejos do IV Centenário da Cidade de São Paulo, quando uma dezena delas foi exposta no Parque do Ibirapuera.

Pardal avaliou que as figuras de barca são “as peças de arte popular mais originais e as únicas de solução genuinamente brasileira, em nosso vasto folclore artístico”. Outro estudioso do assunto, Vasconcelos Maia, analisou o valor artístico destas peças em um texto publicado no Diário de Notícias de Salvador em 22 de fevereiro de 1959:

Têm de concepção, ousadia de formas, de execução, trazendo viva, como na carne, em sua madeira dura, por instrumentos rudimentares trabalhada, todo o esplendor da coisa brasileira. É a madureza e a pureza duma autêntica estética primitiva. Sua forma é áspera como suas soluções. E transmite, com o vigor de sua arte, todo o espírito inquieto, supersticioso e místico de um povo plástico por excelência.

Sobre a localização das barcas com suas carrancas, Paulo Pardal as situa no médio São Francisco considerando que no alto deste rio quase que não existia navegação. No baixo rio, entre Piranhas e a foz, ele observa que existia muita navegação de grandes canoas, “semelhantes às barcas, que entretanto jamais apresentavam carranca”.

Em última análise, “só surgiram carrancas no médio São Francisco porque só nesta região concorreram centros de , com alta densidade demográfica e forte comércio e, finalmente, pelo senso de regionalismo resultante do desejo de emancipação”.

As  últimas carrancas no médio Rio São Francisco foram vistas no início de 1973.

Fonte: Histórias de Alagoas, com edições de Zezé Weiss. Capa: Reprodução

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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