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Pedro Casaldáliga: “Comunista mesmo, só Cristo!”

Pedro Casaldáliga: “Comunista mesmo, só Cristo!”

Ao completar 90 anos de idade, neste fevereiro, o catalão Pere Casaldàliga i Pla pode estar um pouco enfraquecido pela idade e doença crônica, mas sua voz ainda reverbera o grito dos mais fracos na atrasada estrutura agrária brasileira.

Quando o padre Pedro Casaldáliga Plá, nome que adotou no Brasil, chegou às margens do , em 30 de junho de 1968, ele quase entrou em parafuso. As distâncias o confundiam demais da conta.

Os vizinhos e os fiéis católicos ficavam longe, na imensidão do e da . Já a e a Lua estavam ali, bem pertinho, quase como o rio, que ficava a poucos metros, como que lambendo o casebre em que ele foi morar.

A ele, foi puro desígnio divino ir parar nas barrancas de um rio com o qual se parece muito. “É o rio mais romântico do Brasil”, que carrega poesia em suas águas, como ele diz. E Pedro é grande poeta, respeitado no mundo inteiro por seus versos poderosos, quase sempre contra os poderosos de outro matiz.

O Araguaia é, também, “um rio militante”, engajado nos conflitos sociais que, cada vez mais no último meio século, usam seu vale como cenário. E é um rio castigado, sofrido, pela ação dos mesmos humanos que não gostam de poetas nem de militantes que sigam ao lado dos mais fracos.

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Pedro já completou quase um século de vida e reluta em deixar São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, bem em frente à Ilha do Bananal, onde vive desde que chegou. Catalão, ele viveu até os 40 anos na Espanha do Generalíssimo Franco, num tempo em que a Igreja Católica alisava o regime fascista de lá.

Chegou ao Brasil no período mais duro da e foi parar no barril de pólvora da “fronteira agrícola”, onde os conflitos agrários banalizavam a morte. Tinha tudo pra tucanar, pra ficar em cima do muro e deixar o pau rolar. “A realidade não permitia deixar de optar”, relembra ele.

A opção era entre os grandes latifundiários, financiados pelo Governo Federal e protegidos pelos militares, e os posseiros, peões semiescravos e índios. Nos seus primeiros dias na região, um fazendeiro lhe disse:

– Padre, logo o senhor será fazendeiro também.

Ele retrucou, de pronto:

–  Só perdendo a cabeça ou a fé.

Meses depois, foi convidado pra um almoço na Fazenda Suiá-Missú, maior que o Distrito Federal, de propriedade de uma rica família paulista. Eram 160 convidados, vinte aviões, um fausto banquete – num ambiente socioeconômico que não era de festa, era de guerra pela simples sobrevivência. Foi a conta.

Na África, dez anos antes, Pedro foi implantar o programa “Cursilhos da Cristandade”. Na Guiné, que então ainda era colônia espanhola, ele se recusou a formar grupos que não fossem mistos, de brancos e negros. “Ou é café-com-leite, ou nada”, impôs, e foi atendido.

Sua tomada de partido diante do , aqui, era visível em sua fisionomia – magro, pequeno, óculos fundo-de-garrafa. Primeiro, deixou de cumprimentar grandes fazendeiros. Depois, fechava o rosto a eles. E só visitava casas e comunidades pobres da extensa prelazia, que ia do Araguaia ao Xingu. De fazendeiro, não aceitava nem carona.

Por fim, resolveu denunciar. Jornalista, com passagem por vários órgãos da imprensa católica na Espanha, sabia como difundir notícias sobre o que ali se passava. No início de 1970, escreveu um relatório intitulado “Escravidão e Feudalismo no Norte do Mato Grosso”, que enviou a seus superiores, autoridades do governo e entidades civis.

Era um torpedo, um rico e duro diagnóstico da situação social e econômica da região. Mas, a representação do Vaticano no Brasil à época determinou que o documento não fosse mais divulgado. Paciente, Pedro resolveu esperar.

Ele tinha vindo pro Brasil montar uma nova prelazia e esta, muito logo, teria que ter um bispo. Ele diz que foi indicado por falta de alternativa, porque sua fama de “comunista” já corria longe. Menos de um ano depois, ao sagrar-se bispo, leu o tal documento publicamente. Foi um estrondo.

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O Papa Paulo VI tentou tirá-lo do Brasil, mas ele não aceitou. João Paulo II disse dele que era “mais fácil fazer poetas do que bispos”. Nisso tudo estavam algumas de suas qualidades: ousadia e coragem nas atitudes, e um enorme talento pra pôr no papel sentimentos e verdades.

A equipe da prelazia ampliava sua atuação na de base, jornal e boletins da igreja corriam pela região, e nascia a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Mais ao norte, no Pará, rio abaixo, ocorria a (1972/75), que não era coisa da igreja (era o PCdoB). Enfim, a tensão crescia. Era um clima de guerra.

Pedro seguiu em frente, ajudando os sem-terra (ainda não havia o MST) a ocupar áreas devolutas, a enfrentar pistoleiros. Em 1976, ele e o padre João Bosco Burnier, de outra prelazia, foram ao povoado de Ribeirão Bonito acudir duas mulheres que estavam presas, sendo torturadas pela polícia local.

Três minutos de conversa, e um policial deu um soco, uma coronhada e um tiro no rosto do padre Burnier, que morreu na hora. Consta que o atirador se enganou, porque Burnier tinha mais “jeito de bispo”. A população invadiu a cadeia, libertou as mulheres e pôs fogo em tudo.

Um ano depois, no local, era inaugurada uma igreja, num evento que mobilizou centenas de policiais armados até os dentes – e que foi divulgado no mundo inteiro. Com Pedro à frente de tudo.

E assim sucederam-se casos e mais casos, anos a fio, sem que Casaldáliga mudasse seu rumo, seu jeito, seu estilo franciscano de vida, embora ele seja da congregação Claretiana. A mesma casa da chegada, ampliada pra atender visitantes, mas modesta como sempre, ele manteve até deixar o posto. A primeira geladeira, ele aceitou ganhar quando já tinha mais de 70 anos, porque nunca quis desfrutar de confortos que os vizinhos não pudessem ter.

Como nos velhos tempos, ele prefere andar de ônibus, embora hoje a idade e a saúde não o recomendem. Seus trajes são as roupas de cidadão comum, suas comidas são as que o povo come.

Desde sempre, sua vida é rezar, trabalhar e escrever, escrever. Em português e em catalão. Mas falar, só em português, que era uma regra na sua prelazia. Os períodos diários de oração solitária são sagrados, mesmo que pra isso só reste tempo nas madrugadas.

Ele nunca gostou de homenagens ou de ser idolatrado. É bem verdade que, após o fim da ditadura, aceitou receber o título de cidadão honorário de Brasília, pois viu nisso uma forma de sentir-se um pouco mais brasileiro.

Na Internet, especialmente em páginas de entidades cristãs, é possível encontrar suas obras. São dezenas de livros de poesia, obras teóricas, cartas, vídeos, filmes, todas com a marca da Teologia da Libertação. Sempre conectadas com os movimentos populares de toda a América Latina.

Um de seus poemas mais conhecidos é uma homenagem a Che Guevara. E, em cartas, ele tratava o líder cubano Fidel Castro por “você”. Ao final de uma delas, diz que não iria abençoar o líder cubano porque “tenho dois anos a menos que você, e cabe aos mais velhos abençoarem”.

O quadro social e econômico na região de São Félix, como em quase toda a , mudou nesse meio século, mas não melhorou – em muitos aspectos, aliás, fez foi piorar. Mas, mesmo assim, Pedro acha que é possível “ser menos radical”. E arremata: “Mas não pouco radical”.

Hoje ele viaja menos, tanto no Brasil como ao exterior, mas aceitou ir à Espanha, no início de fevereiro, onde foi homenageado em comemoração aos 90 anos. Desde 02 de fevereiro de 2005, quando o Papa João Paulo acolheu seu pedido de renúncia, ele não comanda mais a prelazia de São Félix, pra alegria dos ruralistas.

Contudo, ficou na região e recebeu do Vaticano o título de bispo emérito daquela localidade. Sobre sua fama de “comunista”, criada desde quando ele era apenas padre, ironiza dizendo que “verdadeiramente comunista, só Cristo conseguiu ser”.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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