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CÓDIGOS DA FLORESTA: A FESTA DA MENINA-MOÇA

No cinema, denomina-se “ponto de virada” o instante ou acontecimento em que se quebra o rumo da e leva a narrativa para outra direção. É um momento crucial que interliga etapas distintas. Na cultura , muitas etnias têm um processo semelhante para marcar a transição na vida de uma adolescente para o estágio de mulher adulta. No roteiro de vida do povo Juma, esta é a Festa da Menina-Moça…
 
Por Gabriel Uchida/ Amazônia Real 

A cerimônia não é apenas comum entre muitas etnias indígenas, como também apresenta semelhanças no rito de passagem e, em alguns casos, tem até o mesmo nome: Festa da Menina-Moça. É o caso dos Tenetehara, autodeterminação do povo Guajajara, do , e os Mamaindê, também conhecidos como Nambikwara, no norte do Mato Grosso. Já os Tikuna, originários do Alto Rio Solimões, no Amazonas, usam a nomenclatura Festa da Moça Nova.

No caso dos Juma, que vivem na aldeia tradicional em Canutama, no sul do Amazonas, a história é um pouco mais complexa. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, a etnia sofreu massacres por conta da invasão de comerciantes de seringa e castanha na terra indígena de 38.351 hectares.

CÓDIGOS DA FLORESTA: A FESTA DA MENINA-MOÇA
A aldeia Juma fica em Canutama, no sul do Amazonas. (Foto: Gabriel Uchida/ Real)

A aldeia Juma fica em Canutama, no sul do Amazonas. (Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real)

 

Em 1998, só existia um grupo de apenas seis pessoas da etnia Juma:  as meninas Borehá, Maitá e Mandeí, o pai Aruká e o casal de tios idosos Inté e Marimã. Eles foram retirados de forma irregular, sem estudo antropológico, do território tradicional por um administrador da Fundação Nacional do Índio (Funai) e levados, inicialmente, para a Casa de do Índio (Casai) em Porto Velho, Rondônia.

Na ocasião, não havia também mais homens da etnia Juma com idade para casar com as adolescentes Borehá, Maitá e Mandeí. Leia aqui.

Com alta vulnerabilidade social e cultural, a Funai levou o grupo Juma para viver na terra dos índios Uru Eu Wau Wau, em 1999. Os dois povos falam a língua -Guarani e são denominados Kagwahiva.

Durante o primeiro ano de afastamento do território tradicional, o casal Inté e Marimã morreu “provavelmente de tristeza e inadaptação ao novo lar”, como diz a Funai.

Na aldeia do Alto Rio Jamari, que fica no município de Jorge Teixeira, as três adolescentes Juma aceitaram os casamentos com os para garantir a continuidade da família, segundo a Funai.

Borehá Juma casou com Erovak Uru Eu Wau Wau e ambos tiveram quatro filhos. Maitá uniu-se a Puruwá Uru Eu Wau Wau, com quem teve dois filhos, mas ele morreu em 2009 quando foi atingido por um raio. Maitá se casou novamente. Com Puruen Uru Eu Wau Wau, ela teve mais duas . Mandeí Juma casou com Kuary Uru Eu Wau Wau, com quem teve três filhos.  Atualmente, Mandeí e Kuary estão separados.

Em 2013, os Juma regressaram ao território tradicional em Canutama, após 14 anos de afastamento e quatro tentativas de regresso mal sucedidas entre os anos de 2008 a 2011. Atualmente, a família Juma-Uru Eu Wau Wau é formada por 18 pessoas. Aruká, com mais de 80 anos de idade, tem 12 netos e uma bisneta. Quando vivia na Aldeia do Alto Rio Jamari, ele havia se casado com uma indígena Uru Eu Wau Wau, mas depois o casal se separou. Aruká não voltou a casar novamente.

 Preservando a cultura

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A menina fica reclusa na rede sob cuidados das tias e mãe. (Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real)

A sociedade Kagwahiva é caracterizada por um sistema patrilinear em que cada pessoa é metade do pai. A Festa da Menina-Moça é feita nos moldes da cultura Uru Eu Wau Wau, quando a cerimônia acontece na aldeia dessa etnia.

Borehá, Maitá e Mandeí fazem questão que suas filhas mantenham a tradição, mas quando a festa é na aldeia Juma a cerimônia é na cultura das mães –  com a anuência dos pais Uru Eu Wau Wau.

 “Não tem diferença nas festas. É tudo igual. A diferença é que a festa na aldeia Juma aconteceu pela primeira vez em mais de 20 anos. Isso é muito importante porque estamos preservando a nossa cultura. E muitas festas irão acontecer a partir de agora”, disse a cacique Mandeí Juma à Amazônia Real.

Ivanete Bandeira, coordenadora da organização Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, que atua na defesa do junto às etnias Uru Eu Wau Wau e Juma, diz que no passado, quando havia mais homens da etnia Juma, a Festa da Menina-Moça também significava o casamento.

“A mulher, ao acolher o esposo, recebia vários conselhos de como tratá-lo, como agir na comunidade e, principalmente, como deveria se preparar para ser mãe. Porém, à medida em que o povo Juma foi sendo massacrado, seus costumes também foram se perdendo”, disse a coordenadora da Kanindé.

Hoje, o ritual consagra a passagem da fase para a adulta. “É importante o jovem ter esse resgate para manter a cultura viva e não perder a tradição”, defende Ivanete Bandeira.

O primeiro ritual da Festa da Menina-Moça de filhos de Juma com Uru Eu Wau Wau aconteceu em 2014. A menina que passou pelo rito foi Kunhãvé, hoje com 16 anos. Filha de Maitá e Puruwá, a cerimônia aconteceu na aldeia do Alto Jamari, na terra dos Uru Eu Wau Wau, em Rondônia.

Em abril de 2016, foi a vez da menina Tejuvi, de 12 anos, filha da cacique Mandeí Juma com Kuary Uru Eu Wau Wau. A festa foi na aldeia da Terra Indígena Juma, em Canutama, no sul do Amazonas. A cerimônia foi realizada com o apoio da Funai de Humaitá (AM) e da ONG Kanindé.

Seguindo as culturas indígena Juma e Uru Eu Wau Wau, assim que teve a primeira menstruação, Tejuvi foi levada para uma rede, onde permaneceu reclusa.

“A minha filha Tejuvi ficou moça e nós resolvemos fazer a festa aqui na aldeia Juma. Ela ficou deitada na rede por 21 dias”, contou a mãe da menina, a cacique Mandeí Juma.

O dia do ritual

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A menina Tejuvi Juma-Uru Eu Wau Wau (Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real)

 

No período em que ficou na rede, o único contato da menina Tejuvi foi com as tias Borehá e Maitá, além da mãe Mandeí, que a alimentavam.

Quando chegou a hora de sair da rede, a família se reuniu em volta da garota ainda no meio da madrugada e começou a cantar. O dia era 11 de abril de 2016.

É um momento de angústia. As músicas são melancólicas e falam do sofrimento que a vida adulta traz. Aqui, a liberdade tem uma trilha sonora de dor e amargura.

Sob a escuridão da noite, o ambiente carregado convida ao choro. Fragilizada pelo extenso período de reclusão, a garota foi levada para se sentar em uma cadeira, ainda dentro da casa.

Enquanto os familiares assistiam em silêncio, os pais Kuary e Mandeí a preparavam. O corpo da menina é pintado com jenipapo. Uma longa pulseira foi enrolada no braço em um movimento repetitivo que pareceu infinito. Ostentando um colar de dentes e ossos, a jovem enfim se levantou e saiu da reclusão. Em momento algum ela falou ou esboçou reação. Seus olhos não diziam nada, e é como se seus sentimentos ainda estivessem presos à rede.

Cercada pelos familiares, a menina caminhou carregando baldes até o rio, onde se manteve como uma rocha enquanto foi banhada pela mãe Mandeí. O único barulho que se escutou foi da água.

No retorno à aldeia, quem voltou foi a mulher Tejuvi;  a vida de garota deixou de existir. Assim, ela assumiu as novas responsabilidades, e no dia especial foi preparar a refeição de todos os convidados – sempre em silêncio e jamais sorrindo.

Por mais que outras pessoas ajudem a quebrar e a cortar a castanha, foi Tejuvi quem ficou encarregada de cozinhar. Afinal, ela já se tornara uma mulher adulta.

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Poteí, Mandeí Juma e Tejuvi na aldeia em Canutama. (Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real)
juma amazoniareal 4 Foto Gabriel Uchida AmReal
A preparação da castanha. (Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real)

A preparação da castanha. (Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real)

juma amazoniareal 6 Foto Gabriel Uchida AmReal
O avô, guerreiro Aruká. (Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real)
juma amazoniareal 7 Foto Gabriel Uchida AmReal
Os últimos Juma: Mandeí, Maitá, Borehá e o pai Aruká (Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real)

Fonte: Esta matéria do fotógrafo e jornalista  Gabriel Uchida foi originalmente publicada no site Amazônia Real em 3 de outubro de 2016. Gabriel Uchida visitou a Terra Indígena Juma à convite da cacique Mandeí Juma e da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé.  Nascido em São Paulo (SP), morou na Alemanha, Argentina e EUA. Tem trabalhos realizados e publicados em dezenas de países, além de exposições fotográficas na Europa e África. Atualmente trabalha na Amazônia tendo sua base em Porto Velho (RO).

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

revista 119

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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