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Construção da Nova Ferroeste desconsidera indígenas

Estudo para construção da Nova Ferroeste desconsidera indígenas, aponta MPF

Construção afetará 43 comunidades do Paraná e Mato Grosso do Sul; Funai reconhece falhas.

Por Isadora Stentzler.

O Procurador da República Raphael Otávio Santos apontou, em recomendação, que o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) para a construção da Nova Ferroeste “desconsiderou de forma manifesta a existência” de 43 povos indígenas “na área de influência do empreendimento”. Ele pediu que um novo estudo seja entregue no prazo de 30 dias.

A Nova Ferroeste é uma estrada de ferro que pretende ligar o Oeste do Paraná ao Mato Grosso do Sul. O estudo em questão foi contratado por R$ 13,4 milhões.

A recomendação do procurador versa sobre o Relatório Componente Indígena do estudo e foi encaminhada no dia 17 de março deste ano à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ao Governo do Estado do Paraná, sob pena de nulidade do .

Indígenas de três aldeias diferentes ouvidos pela reportagem disseram não ter sido procurados por nenhum dos órgãos para elaboração do estudo e temem que o empreendimento piore a situação das aldeias. A Funai reconheceu falhas.

“O MPF [Ministério Público Federal] entende como grave a omissão destas comunidades no EIA/Rima, pois os impactos do empreendimento sobre povos tradicionais vulneráveis não foram identificados, não sendo estes povos sequer ouvidos e consultados pelo empreendedor na fase de estudos”, afirmou o procurador à reportagem do de Fato Paraná.

Conforme consta na recomendação, o novo EIA/Rima da nova Ferroeste deverá abranger todos os territórios e povos indígenas direta ou indiretamente impactados pelo empreendimento, independentemente de residirem ou habitarem em território demarcado, declarado ou homologado.

Devem ser consideradas no estudo as comunidades localizadas nos 49 municípios interceptados pela ferrovia e também as aldeias que ficam dentro de situadas em um raio de 10 km da estrada de ferro. Além disso, a análise deve incluir todos os povos localizados a 25 km do eixo da ferrovia, independentemente do município onde estejam localizados.

Ferroeste

A estrada de Ferro Paraná Oeste S.A – Ferroeste foi criada em março de 1988. Na época, segundo histórico apresentado pela própria empresa em seu site oficial, a concessão era entre Guarapuava (PR) e Dourados (MS). O trecho construído e explorado, no entanto, liga apenas Cascavel (PR) a Guarapuava (248 quilômetros).

Em 1996, a Ferroeste foi concedida para a iniciativa privada. O consórcio vencedor constituiu a Ferrovia Paraná S/A – Ferropar e iniciou suas atividades em 1º de março de 1997. Em 2006, ela voltou às mãos do Estado após o consórcio operador do serviço não cumprir parte dos contratos.

Mais recentemente, em 2020, ela foi qualificada no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do Governo Federal como projeto apto para a desestatização, e até hoje há a expectativa para que ela vá a leilão pela B3, sendo vista como um ambicioso projeto “sustentável” pelo “” do Brasil, devido à sua capacidade de escoação.

É nesse contexto que se dão as tratativas para ampliação dos trechos. No traçado proposto, a estrada ligará Paranaguá (PR) a Maracaju (MS) e Cascavel (PR) a Foz do Iguaçu (PR).

O interesse pelo Oeste do Paraná, segundo consta no site do Governo do Estado, é por ele concentrar algumas das maiores empresas de alimentos do país, em especial as cooperativas de proteína animal.

Para que ela vá a leilão, no entanto, precisa apresentar licença, que só é concedida pelo Ibama e necessita de completa análise de impacto ambiental – documento no qual o Ministério Público Federal encontrou falhas no aspecto indígena.

Termo de referência cita apenas uma TI

A pesquisa apresentada pelo Governo do Estado foi contratada por R$ 13.428.000,00 em 1º de outubro de 2020 e foi executada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). No Termo de Referência entregue pela Funai, e que serviu de metodologia para o estudo, são citados os municípios por onde a estrada passará, mas há referências apenas para a Terra Indígena de Rio das Cobras, localizada no município de Novas Laranjeiras (PR).

O EIA/Rima está disponível no site da Ferroeste desde 2021. Segundo laudo técnico realizado pelos peritos do MPF, um total de 43 aldeias foram desconsideradas no documento. “A responsabilidade da Funai é maior”, avalia o procurador. “Pois é o órgão e, conhecendo a existência dos povos indígenas no território, não exigiu que fossem considerados no EIA/Rima.”

Indígenas temem

O indígena Florencio Rékág Fernandes participou como colaborador do estudo. Segundo ele, foram realizadas entrevistas com os anciões, e jovens da Terra Indígena de Rio das Cobras, única citada no EIA/Rima. “É difícil lidar com essa situação, muitos direitos já foram violados, mas atualmente há uma discussão e usamos os resultados das conversas em prol das comunidades indígenas”, ressaltou. Segundo ele, o estudo foi aprovado pela comunidade.

O mesmo não aconteceu, no entanto, com outras aldeias localizadas em Guaíra e Terra Roxa, no Oeste do Paraná, onde lideranças disseram que sequer foram procuradas.

O EIA/Rima chega a mencionar a presença desses povos em outras regiões, mas não os abrange conforme a metodologia orientada pela Funai.

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Na página, 27, relatório cita comunidades que não são contempladas / Reprodução

Cacique Ilson Soares, da tekoha Y’hovy, de Guaíra, disse que o traçado da nova Ferroeste irá percorrer dentro do território de Guasú Guavirá (onde há 15 tekohás, aldeias), beirando as comunidades. A passagem por esse espaço aumenta o temor da comunidades, que já vivem enfrentando violências.

Os conflitos na região perduram há anos e giram em torno do território não demarcado. Em todo o Oeste do Paraná vivem cerca de cinco mil indígenas guaranis, em 24 tekohás diferentes. Dessas, no entanto, apenas três (duas no município de Diamante D’Oeste e uma em São Miguel do Iguaçu) são demarcadas. A falta de terras deixa essas comunidades reféns de diversos problemas, como fome, medo e insegurança.

“Essa estrada de ferro vai passar, praticamente, no meio da terra indígena Guasu Guavirá. Como é uma contínua, ficará uma parte de um lado e outra parte do outro. Não sabemos como serão os impactos físicos e sociais: trazendo mais gente para o município, que é um município muito racista e preconceituoso. Já tivemos muitos problemas com a sociedade ao redor e isso só irá piorar um pouco mais as coisas”, alertou o cacique.

Em janeiro deste ano, um indígena guarani xamoi, como são chamadas as lideranças espirituais das aldeias, de 51 anos, foi sequestrado e torturado com uma arma de fogo nas proximidades da aldeia. Os agressores foram identificados como dois homens brancos, e deixaram hematomas nas costas, braços e boca do indígena, que não registrou Boletim de Ocorrência.

Cacique Anatalio Ortiz, da tekoha Jevy e tekoha Hite, acrescentou que o traçado deve afetar diretamente as tekohas Y’hovy, Guarani, Maragatu, além das que ele lidera.

“Vai ter, além da passagem do trem, construção de área de transbordo. Essa área será construída provavelmente próxima as aldeias Y’hovy, Hite e Jevy, ocasionando ainda maior impacto sonoro nessas comunidades. Além disso, com a construção do potilião, terá o impacto na pesca de subsistência”, afirmou, dizendo que também não foi procurado por nenhum órgão.

Como ele, o cacique Arsenio Dias Jegros Mirim, da Tekoha Mirim, também negou que tenha sido consultado para elaboração do EIA/Rima.

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Em vermelho, o traçado da Nova Ferroeste entre os municípios de Guaíra e Terra Roxa; pelo menos quatro comunidades podem ser afetadas / Reprodução

Em janeiro de 2022, o Ibama recebeu o documento. O procurador Raphael Otávio Santos alerta que o complemento do estudo deve ser realizado ainda nesta fase de licenciamento, ou seja, antes da expedição da Licença Prévia (LP) pelo Ibama, pois eventuais correções necessárias no projeto seriam menos custosas ao empreendedor.

A LP é concedida ainda na etapa de do empreendimento para atestar sua viabilidade ambiental, pois estabelece os requisitos básicos a serem atendidos nas próximas fases da implantação. Por esse motivo, o MPF recomenda que o Ibama aguarde a conclusão dos estudos complementares para só então expedir a Licença Prévia da ferrovia.

Se os órgãos não se manifestarem para o MPF, aponta Santos, serão avaliadas as medidas a serem adotadas, que incluem eventual ação judicial.

O que dizem os órgãos

Procurada, a Funai reconheceu falhas no estudo. “A Funai analisará a Recomendação, bem como observará as diretrizes da Portaria Interministerial nº 60/2015. Há que se destacar que em sua manifestação ao Ibama, a Funai já solicitava ações na TI Boa Vista e execução de eventuais medidas de proteção e em trechos próximos de localidades habitadas por indígenas no Mato Grosso do Sul e oeste do Paraná (região de Guaíra), além da TI Rio das Cobras”, apontou.

A Portaria Interministerial nº 60/2015 regulamenta os procedimentos administrativos no âmbito da Funai, do Instituto do Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do Ibama.

Sobre o Termo de Referência constar apenas a TI Rio das Cobras, o órgão respondeu que é “por se tratar de área regularizada, recorte feito pela gestão passada”.

O Ibama disse que irá responder à recomendação expedida pelo MPF oportunamente e que “analisou a primeira versão do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e solicitou complementações”. “A autarquia aguarda o protocolo das informações complementares da Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística (SEIL), do Governo do Paraná.”

A Nova Ferroeste, em nota, afirmou que “o Governo do Paraná atendeu a todos os pedidos e prerrogativas legais dos órgãos licenciadores para a realização do Estudo de Componente Indígena do projeto da Nova Ferroeste”.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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