Miguel Nicolelis: carta aos meus futuros netos

 Em carta aos seus futuros netos, o grande cientista brasileiro Miguel Nicolelis conta o que aprendeu no primeiro ano (2020) da grande pandemia do coronavírus

Por Miguel Nicolelis, em EL PAÍS

Queridos futuros netos,

Espero que esta missiva lhes encontre em ótima saúde e pleno desfrute de seus amores e paixões num futuro que, lamentavelmente, desafia qualquer predição ou enredo nesta manhã de dezembro de 2020 em que lhes escrevo.

Tal estado de coisas se aplica tanto aos meros mortais como a este seu avô ainda não nomeado, quanto para alguns autoproclamados “futuristas”.

Embora tão ou mais perdidos que nós, estes últimos empolam a voz para prever, com toda segurança (sic) e devida pompa, como será o nosso modo de viver daqui 10 mil anos, quando máquinas inteligentes (só que não) dominarão o mundo e regularão cada aspecto das nossas vidas “para o bem de toda humanidade” (sic).

Convenientemente para esses sacerdotes do Culto da Máquina, ninguém vivo hoje poderá checar a validade dessas profecias, ou falácias, como seu avô gosta de chamá-las.

Mas voltemos à razão primordial que me motivou passar por cima de todos os protocolos e entrar em contato prematuramente com todos vocês meus futuros descendentes.

Antes de tudo, desculpo-me por não mencionar seus devidos nomes, apelidos ou alcunhas.

Como seus progenitores, também conhecidos como meus filhos, seguem adiando indefinidamente o projeto de vossa concepção, eu decidi me adiantar a eles, bem como aos nascimentos e respectivos batismos de suas proles, em prol de manter viva uma tradição familiar que já se estende por mais de um século.Banners gr visite loja Revistas scaled

Assim, mesmo ciente do espanto que esta carta possa lhes causar sem eu ter assumido ainda oficialmente o posto de avô, passo a descrever a necessidade da minha inusitada estratégia de escrever para futuros netos antes mesmo de trocar-lhes a primeira fralda.

Ocorre que durante a minha infância, nos idos da década de 1960, minha digníssima bisavó, dona Ada Maria Luíza De La Santa Rocha Leão, tinha por hábito me encantar com causos da sua vida, que se misturavam com os maiores eventos da história do século passado.

Enquanto fazia o seu crochê, ela me contava coisas, como o primeiro telegrama a chegar na cidade de Tatuí, interior de São Paulo, onde ela residia, ou a primeira transmissão oficial de rádio do Brasil, até o bombardeio da cidade de São Paulo, pelas tropas federais do Presidente Artur Bernardes, durante a revolta tenentista de 1924, que gerou o embrião da épica Coluna Prestes.

Na minha frente, acreditem, eu tinha uma testemunha dos efeitos da eclosão de duas grandes guerras mundiais.

Como observadora dos maiores feitos do século XX – incluindo o Campeonato Mundial do Palmeiras em 1951 que ela celebrava religiosamente todo ano —, Dona Ada viveu e sobreviveu à maior pandemia do século XX.

A estória do que ela presenciou durante aqueles meses de pânico em 1918 e 1919 onde a “Gripe Espanhola” — que de espanhola não tinha nada — vitimou milhares de brasileiros, era sempre motivo de inúmeros pedidos de “bis” feitos pelo seu mais fiel ouvinte e primeiro bisneto, devidamente aboletado no amplo sofá da bucólica casa na rua Chanés, no bairro de Moema, onde duas imperatrizes da Toscana no exílio, Ada e Lygia (sua filha), residiam, espalhando sabedoria.

Curiosamente, o que mais me marcou no relato de Ada sobre a pandemia de 1918 não foi a descrição do dia a dia da tragédia em si, mas as lições que a então adolescente ítalo-brasileira extraiu do evento que abalou todo o , invariavelmente resumidas no seu vaticínio “O que eu aprendi com a Grande Pandemia de 1918”.

Pois bem, meus queridos futuros netos, tendo sobrevivido — até agora — à maior pandemia em 100 anos, graças, em grande parte, às lições da minha querida bisavó toscana, esta carta tem o intuito de manter a tradição iniciada por Dona Ada e perpetuar a sincronização da nossa “brainet” ítalo-greco-brasileira, através do meu aditamento da já tradicional série familiar (em breve, disponível no seu streaming favorito).

Segue, portanto, a lista de aprendizados derivados do meus exatos 9 meses de isolamento social, passados num apartamento da cidade de São Paulo, em decorrência da pandemia de , que assolou o mundo em 2020 e que, provavelmente como todos vocês já devem saber aí no futuro, continuará a provocar sobressaltos em 2021 e em muitos anos por vir.

No topo da minha lista, meus amados futuros netos, não poderia faltar a constatação de que a pandemia de covid-19 escancarou de forma explícita as fragilidades acumuladas em todo o nosso planeta em decorrência das falácias embutidas num modelo de crescimento e globalização totalmente caóticos.

Desde a sua implantação, alguns séculos atrás, com o advento da industrial, esse modelo se caracteriza por promover não só níveis insustentáveis de destruição ambiental, mas graus inaceitáveis de desigualdade econômica e social. Conjuntamente, esses fatores ameaçam a própria sobrevivência da nossa espécie, bem como de todas as formas de vida do planeta.

Junte-se a isso a constatação da inexistência de qualquer mecanismo de governança econômico-político-sanitário-científico genuinamente global, democrático, eficiente e transparente o suficiente para lidar com tragédias de escala mundial.

Como consequência, toda a humanidade permanece à mercê de eventos catastróficos, capazes de nos conduzir a um destino extremamente peculiar: a extinção de toda uma espécie promovida pelos desígnios de alguns poucos membros desta mesma espécie.

Nesta altura, vale também ressaltar a total estupefação deste seu avô ao comprovar, repetitivamente, que poderosas abstrações mentais criadas pelas nossos cérebros de primatas, como sistemas político-econômicos, ideologias, rituais religiosos (como as festas de Natal no Brasil ou o Dia de Ação de Graças nos EUA) e visões de mundo que contradizem os fatos mais básicos do Universo, continuam a ter precedência nas mentes de bilhões de seres humanos.

Isso se dá — acreditem! — quando esses são confrontados com a necessidade de manter ou mesmo reforçar todas as medidas não farmacológicas de proteção — como o isolamento social — para evitar novas ondas de covid-19, apenas meses antes de vacinas eficientes e seguras contra o SARS-CoV-2 serem disponibilizadas para toda a população.

Imaginem então a frustração deste seu avô neurocientista – me permitam assumir o meu papel de vez – em constatar que seus conterrâneos brasileiros decidiram chutar o proverbial balde coletivamente, decretando por aclamação o final da pandemia e, em ato contínuo, encher as praias, shoppings e bares nos dias de sol e de chuva, jogando por todo o país e já preparando as respectivas festas e viagens de final de ano, cujas aglomerações servirão apenas para produzir o maior presente de Natal que o novo coronavírus poderia pedir a Papai Noel?

Se isso não bastasse, como vocês reagiriam ao saber que durante na campanha eleitoral nacional de 2020, em plena pandemia fora de controle, nada de relevante foi realmente discutido em relação ao que deveria ser feito para preparar o país para uma iminente segunda onda de casos e óbitos?

E não se trata de exagero de cientista, já me antecipo. A minha preocupação tem razão de ser.

Como vocês aprenderam nos livros texto, casos e óbitos de covid-19 já se transformaram em tsunami em terras europeias e começam a inundar as nossas praias tropicais, como previamente anunciado numa outra missiva de minha autoria.

De fato, no Brasil, a grande pandemia de 2020 se transformou num enorme elefante, abandonado à própria sorte, bem no meio da sala de estar, a quem ninguém quer dirigir a palavra ou se responsabilizar pelos seus cuidados, esperando que ele desapareça espontaneamente de vista.

Pois bem, meus queridos netos, na Grande Pandemia de 2020 tudo isso aconteceu, acrescido de manifestações contínuas de autoridades governamentais brasileiras que contradizem toda e qualquer boa prática sanitária que poderia ter evitado mais e sofrimentos em todo país.

Mas como a ideia aqui é manter a narrativa iniciada por dona Ada, eu gostaria de terminar esta nossa primeira interação da mesma forma que ela terminava as nossas conversas no sofá do seu Castelo Imperial de Moema: com uma pequena lista de observações que talvez sirvam de alguma ajuda ou alento, caso vocês também tenham que enfrentar circunstâncias semelhantes neste seu futuro que eu nem ouso imaginar como será.

Segue abaixo, então, um pequeno apêndice às leis de Dona Ada de como sobreviver a uma pandemia.

Passadas poucas semanas após o início da quarentena, eu descobri que podia viver com bem menos do que normalmente vivia.

Parte dos nossos problemas advém de uma cultura de consumismo desenfreado que tem pouco a ver com as nossas reais necessidades fundamentais de vida.

Invariavelmente, creiam-me, menos significou mais em termos da minha qualidade de vida durante esta pandemia. Portanto, eu recomendo este downsizing a todos vocês, queridos netos.

Durante esta pandemia, para mim o tempo voltou a ser analógico, quer dizer, contínuo, sem os intervalos precisos ditados pela modernidade e o seu aparato tecnológico de arregimentação coletiva (relógios e agendas).

Neste período de isolamento social, o meu ritmo de vida voltou a ser muito mais natural e condizente com o processo evolutivo que nos trouxe até aqui, ao longo de milhões de anos, esculpindo a nossa biologia a cada passo.

Assim, eu aproveitei este inesperado presente da pandemia para recuperar comportamentos que foram quase perdidos, como, por exemplo, olhar de vez em quando para o céu no meio do dia, ou em noites estreladas, e simplesmente observar em silêncio o cosmos que nos abraça.

Com um pouco de imaginação (e um aplicativo espetacular), a sacada do meu apartamento virou um verdadeiro observatório astronômico. E também minha praia, onde eu religiosamente tomei uma hora de banho de sol a cada manhã, me informando sobre tudo que descobrimos sobre o SARs-Cov-2.

Durante o meu prolongado isolamento social, eu também descobri o que realmente é essencial na minha vida: transformar “energia potencial” oferecida generosamente pelo sol em conhecimento e repassá-lo para todos que queiram absorvê-lo.

Talvez este tenha sido o período em que eu mais estudei e aprendi sobre assuntos que nada tinham a ver com a minha vida de cientista profissional.

E como resultado desta experiência inesquecível, eu decidi mudar radicalmente a forma de exercer a minha arte, a , quando esta pandemia acabar.

Mas outras descobertas inesperadas ocorreram. Por exemplo, bastou receber de presente um pé de manjericão e um de girassol (fotos no meu Instagram: @mnicolelis) para descobrir que a empatia humana e o verdadeiro ainda existem entre nós.

Desde então, o pé de manjericão e eu compartilhamos uma missão recíproca: cuidar um do outro para garantir que ambos saiam em grande forma desta pandemia. Até agora, nós tivemos sucesso nesta nossa colaboração.

Como ocorreu em 1918, eu confirmei a máxima de que quando a política bate de frente com a biologia, a biologia continua ganhando de goleada.

Apenas alguns políticos caricatos continuam a ignorar esta verdade histórica. E a história não será generosa com nenhum deles quando a autópsia da Grande Pandemia de 2020 for finalmente realizada, pois no Brasil, eu constatei que lutamos não só contra uma pandemia, mas também contra o pandemônio político e a patifaria humana – que eu chamo de 3 Ps.

E no país dos 3 Ps, o coronavírus conseguiu seu intuito principal: sobreviver, prosperar e proliferar rapidamente às custas da incompetência, inoperância e ignorância galopantes, tanto de alguns governantes despreparados, como de setores da nossa .

Ainda assim, todos estes 3 Ps podem ser derrotados, pois, para cada um deles, há uma vacina específica a ser usada. E eu continuo acreditando ser possível varrer esses três vírus do cenário brasileiro, de preferência antes do nascimento de vocês, meus já amados netos.

Finalmente, nesses últimos 9 meses, me dei conta de que, pela primeira vez, em toda história da humanidade, a ciência de ponta e tecnologias as mais diversas, como vacinas, internet e telefones celulares, vão desempenhar papel essencial na diminuição do sofrimento e das mortes causadas por uma pandemia.

Mas algo mais essencial precisa acontecer para que nós possamos sair desta crise existencial e tentar criar um futuro melhor para todos que, como vocês, ainda estão por nascer.

Eu me refiro a um verdadeiro resgate da condição humana e de todos os valores humanísticos sem os quais, infelizmente, esta missiva jamais será lida por nossos futuros descendentes.

Pois, nenhuma descoberta científica, nenhuma nova tecnologia, por mais radical e inovadora que seja, será capaz de nos salvar de um fim tão inevitável quanto previsível – a nossa extinção –, caso não sejamos capazes de renunciar à nossa atual apatia e erguer os olhos para encarar de frente todos os nossos erros, cometidos por séculos a fio, bem como todos os falsos profetas e suas profecias vazias, e gritar com uma única voz, em alto e bom som, BASTA!

Até um dia meus queridos. Se o Big Bang deixar.

Miguel Nicolelis é um dos nomes com maior destaque na ciência brasileira nas últimas décadas devido ao trabalho no campo da neurologia, com pesquisas sobre a recuperação de movimentos em pacientes com deficiências motoras. Para a abertura da Copa de 2014, desenvolveu um exoesqueleto capaz de fazer um jovem paraplégico desferir o chute inicial do torneio. Incluiu recentemente à sua lista de atividades a participação no comitê científico criado pelos governadores do Nordeste para estudar a pandemia da covid-19. Twitter: @MiguelNicolelis

Fonte: Viomundo


 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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