Covid-19: quem deve vacinar primeiro?
Idosos e crianças primeiro? Como foi distribuída vacina contra H1N1 e quais lições valem para a covid-19
Por André Biernath – Da BBC News Brasil
O recado veio na quarta-feira (14/10) pela cientista-chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS), Soumya Swaminathan. “Para uma pessoa comum, jovem e saudável, talvez seja necessário aguardar até 2022 para ter a vacina”.
De acordo com a análise, é provável que o mundo tenha um imunizante ainda em 2021, mas ele deverá ficar restrito num primeiro momento a profissionais da saúde, idosos e pessoas com doenças crônicas, como diabetes e hipertensão.
Em entrevista à emissora CNN Brasil na terça-feira, a sanitarista Mariângela Simão, vice-diretora-geral da OMS, também afirmou que é impossível pensar numa imunização em massa contra o Sars-CoV-2 no Brasil em 2021.
“Não vai ter vacina suficiente no ano que vem para toda a população, então o que a OMS está orientando é que exista uma priorização para profissionais de saúde e pessoas acima de 65 anos ou que tenham alguma doença associada”, disse a especialista.
Atualmente, 213 candidatas à vacina contra a covid-19 estão em desenvolvimento. Dessas, 36 estão no estágio de pesquisa clínica, que envolve testes com seres humanos — nesse grupo, há nove imunizantes na fase 3 dos estudos, a última etapa antes da aprovação final pelas agências regulatórias dos países.
Apesar de essa corrida contar com muitos concorrentes, os desafios não se limitam aos experimentos científicos: mesmo aquelas vacinas que se saírem bem nos testes passarão por uma longa jornada antes de serem aplicadas nas pessoas. Afinal, é preciso criar uma estrutura gigantesca para fabricar, envasar e distribuir milhões e milhões de doses para todo o planeta.
Considerando que a humanidade não terá a capacidade de produzir bilhões de vacinas contra o coronavírus de um dia para o outro, cientistas e autoridades de saúde pública trabalham para responder uma pergunta bastante complicada: quem devem ser os primeiros grupos a serem imunizados?
A pandemia de H1N1 que ocorreu entre 2009 e 2010 pode oferecer algumas pistas de como a humanidade lidará com essa questão.
Outro vírus, outra história
De acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), o vírus influenza H1N1 responsável pela pandemia de 2009 causou entre 151 mil e 575 mil mortes nos primeiros doze meses.
A doença surgiu em meados de abril no México e logo se espalhou para diversos países — a OMS estabeleceu ápice de pandemia no dia 11 de junho daquele mesmo ano.
A diferença entre passado e presente está justamente na rapidez (ou na demora) para desenvolver uma vacina: em 12 de junho de 2009, um dia depois do decreto de pandemia pela OMS, a farmacêutica suíça Novartis anunciou que tinha desenvolvido uma primeira versão do imunizante contra a nova cepa do H1N1.
Três meses e três dias após essa primeira boa notícia, a Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória americana, aprovou quatro tipos de vacinas contra esse influenza pandêmico. E, em outubro de 2009, uma campanha de imunização massiva já estava em andamento nos Estados Unidos.
Mas como foi possível fazer todo o processo nessa velocidade? “Falamos de uma doença com a qual já tínhamos uma larga experiência de prevenção e tratamento e havia toda uma estrutura montada para fabricação das vacinas”, diz o pediatra infectologista Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Portanto, como a vacinação contra a gripe já era rotina em muitos países, os especialistas conseguiram utilizar essa expertise para conter a pandemia com relativa rapidez.
No Brasil, a imunização contra o H1N1 pandêmico se iniciou em março de 2010 e tinha como principal objetivo conter uma “segunda onda” de casos no início do outono e no inverno a partir de abril e maio daquele ano.
Em nota técnica, o Ministério da Saúde definiu cinco grupos prioritários para a vacinação: população indígena aldeada; gestantes; pessoas portadoras de doenças crônicas; crianças maiores de seis meses até dois anos de idade; adultos jovens entre 20 e 39 anos.
Ao contrário do que acontece normalmente nas campanhas regulares contra a gripe, os idosos não integraram os grupos prioritários de vacinação para esse influenza específico.
“Acredita-se que os indivíduos mais velhos tiveram algum contato com uma variante desse H1N1 em décadas passadas, o que conferiu maior proteção a eles naquele 2009”, explica Kfouri.
Os dados indicam que essa cepa de influenza acometia os jovens com mais frequência: dados do período calculam que adultos de 20 a 29 anos representaram 24% dos casos de Síndrome Aguda Respiratória Grave (SRAG), uma das manifestações mais graves da gripe. Já os indivíduos entre 30 e 39 anos foram o grupo etário com maior mortalidade pela doença naquele momento — daí a necessidade de proteger essa faixa etária o mais rápido possível.
De volta ao presente
Enquanto as vacinas contra a covid-19 não são aprovadas, as autoridades em saúde pública já discutem como definir quem serão os grupos prioritários das campanhas. Por ora, há muitas propostas e ideias, mas poucas definições.
Uma reportagem publicada no jornal O Globo no dia 10 de agosto aponta que o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Arnaldo Medeiros, havia proposto que o governo usasse a mesma estratégia das campanhas de imunização contra a gripe na pandemia atual.
A ideia suscitou muitas críticas, uma vez que os grupos de risco para gripe e covid-19 apresentam muitas diferenças. As crianças, por exemplo, fazem parte do público-alvo da imunização contra o influenza. No entanto, as evidências indicam que elas são pouco acometidas pelo coronavírus que está em circulação no momento.
No Estado de São Paulo, o secretário da saúde Jean Gorinchteyn anunciou em entrevista coletiva no dia 5 de outubro que a primeira fase de vacinação no estado incluirá os profissionais da saúde. Na sequência, seriam contemplados os educadores e as pessoas com doenças crônicas.
Há até um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados em Brasília que procura estabelecer uma ordem de acesso à vacina contra a covid-19.
De autoria de Wolney Queiroz (PDT-PE), o documento defende que os primeiros contemplados sejam os profissionais essenciais ao controle de doenças e à manutenção da ordem pública, seguidos por pessoas com mais de 60 anos, indivíduos com doenças crônicas, professores e profissionais de apoio em escolas públicas e privadas, trabalhadores que fazem atendimento ao público, jornalistas e, por fim, a população saudável com menos de 60 anos.
Por mais que existam muitas ideias em discussão, quem vai bater o martelo é o Ministério da Saúde. “O cenário será desenhado não por governadores ou deputados, mas pelos integrantes de câmaras técnicas, com experiência no programa nacional de imunizações”, completa Kfouri.
E no exterior?
As propostas sobre os grupos prioritários parecem estar um pouco mais adiantadas em órgãos internacionais e alguns países do Hemisfério Norte.
Em comunicado publicado no dia 14 de setembro, o Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização (Sage), da OMS, afirma que os imunizantes são um bem público. “O objetivo geral é que as vacinas contra a covid-19 contribuam significativamente para proteção e promoção equitativas do bem-estar humano entre todos os povos”, escrevem os especialistas.
Nessa linha, existem iniciativas para que as vacinas sejam ofertadas em primeiro lugar aos grupos prioritários do mundo todo antes de serem disponibilizadas à população geral dos países com melhores condições para fabricar ou comprar as doses.
Na prática, profissionais de saúde e idosos de todas as nações seriam imunizados antes dos outros. “Isso exigiria uma grande discussão global, com acordos multilaterais, parcerias e quebras de patentes”, prevê Kfouri.
No Reino Unido, o Comitê Conjunto de Vacinação e Imunização, que reúne especialistas de diversas universidades, divulgou um parecer em 25 de setembro que define a seguinte ordem de prioridade:
– Idosos que necessitam de cuidados em casa e seus cuidadores;
– Todos com mais de 80 anos e profissionais de saúde e de serviço social;
– Todos com 75 anos ou mais;
– Todos com 70 anos ou mais;
– Todos com 65 anos ou mais;
– Adultos de alto risco com menos de 65 anos;
– Adultos de risco moderado com menos de 65 anos;
– Todos com 60 anos ou menos;
– Todos com 55 anos ou menos;
– Todos com 50 anos ou menos;
– O restante da população.
No documento, os próprios especialistas admitem que essa estratégia pode ser completamente modificada de acordo com os resultados dos estudos de fase 3 das candidatas à vacina, que devem ser divulgados nos próximos meses.
Caso os primeiros imunizantes aprovados se mostrem pouco efetivos nos mais idosos e funcionem bem em adultos jovens, os esquemas serão alterados.
Nos Estados Unidos, as Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina também traçaram um plano de vacinação contra o coronavírus. A proposta tem modificações importantes quando comparada à versão do Reino Unido:
– Fase 1a: trabalhadores de alto risco em unidades de saúde e serviços de emergência;
– Fase 1b: pessoas de todas as idades com doenças crônicas com alto risco de complicações e idosos que vivem com outras pessoas ou em locais com alta concentração populacional;
– Fase 2: trabalhadores de indústrias e serviços essenciais à economia com alto risco de exposição ao vírus; professores e funcionários de escolas; pessoas de todas as idades com doenças crônicas com risco moderado de complicações; idosos não contemplados na fase 1; indivíduos que vivem em albergues ou em situação de rua; pacientes com deficiência física ou mental; pessoas em prisões e centros de detenção; funcionários de penitenciárias;
– Fase 3: adultos jovens; crianças; trabalhadores de indústrias e serviços essenciais à economia com risco alto de exposição ao vírus que não foram incluídos na fase 1 ou 2;
– Fase 4: todos os residentes nos Estados Unidos que não receberam as doses nas fases anteriores.
Dá pra copiar?
Por mais que os modelos estrangeiros sirvam de inspiração, Renato Kfouri não acredita que seja possível adotar um caminho único para todos os países.
“É preciso levar em conta as particularidades de cada local, como a pirâmide etária, a quantidade de idosos e o tamanho da população”, aponta o diretor da SBIm.
As previsões sobre se a vacinação em massa ocorrerá em 2021 ou 2022 também dependem do tipo de vacina que será aprovada pelas agências regulatórias. “Alguns imunizantes sintéticos podem ser produzidos em larga escala num curto espaço de tempo, enquanto outros, que necessitam de organismos vivos e laboratórios mais complexos, podem demorar”, diz Kfouri.
Tampouco, no atual cenário, é possível se basear em alguma política adotada para conter a pandemia de H1N1, há cerca de 11 anos. “Naquele momento, não aprendemos a usar máscaras. Os países pouco cooperaram em relação às vacinas. Poderíamos ter aprendido mais com essa experiência de 2009 e desenvolvido estratégias melhores para lidar agora com a pandemia de Covid-19”, lamenta o médico.
Fonte: BBC
<
p style=”text-align: justify;”>